Andei lendo “Vida e obra de Vincent Van Gogh” de Janice Anderson. Considero um tanto assustador pensar que através da obra de um artista, pesquisadores e estudantes identifiquem sua psique, suas manias e anseios. No texto sobre a tela “Campo de Trigo com Ciprestes” (1889) diz-se o seguinte: “Este quadro foi pintado durante o verão, em St-Rémy-de-Provence, enquanto Van Gogh se recuperava do primeiro ataque de loucura, e a tensão do artista se revela na turbulência das nuvens e do céu”.

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Trata-se mesmo de tensão? É a obra de Van Gogh expurgo de seus traumas? Ou será que no dia que ele pintou este quadro estava prestes a cair uma tempestade e ele traduziu o céu exatamente como via? Ou talvez ele tenha dado pinceladas rápidas só porque queria chegar em casa antes da tempestade, fazer um chá e tomar diante da lareira, ao som das trovoadas?

Larguemos as telas e a vida de Van Gogh. Tomemos a pena e as letras. Costumo dizer, e gosto de pensar assim, que um dos prazeres de escrever é poder brincar de Deus, no sentido menos litúrgico que possa haver, criar uma personagem e colocá-la nas situações que bem entender, salvá-la, puni-la, dar-lhe riqueza ou desventura, manipulá-la para servir aos desejos de outra personagem ou dar-lhe poder absoluto. Faço isso e é possível que venha um acadêmico dizer que o egocentrismo e a megalomania fazem parte da personalidade deste escritor. Quiçá eu diga que crio com mais facilidade nos momentos de tristeza e paixão e dirão que tenho personalidade depressiva; se o contrário, sou Poliana criando um mundo paralelo cor-de-rosa? Escrevo sobre conflitos internos e morte e serei diagnosticado com impulsos suicidas.

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Sim, estou exagerando. É uma forma de pôr foco nessa tendência de descobrir-se o humano por trás da arte. É quase cômico ver analistas tentando desvendar as mensagens subliminares do que pode ser apenas literal. Dissecar artista e obra para entender o que não foi dito.

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Certa vez, palestrava em uma escola do ensino fundamental sobre meu primeiro livro “Fritz, um sapo nas terras do príncipe” e um aluno me perguntou qual a moral que eu quis dar para a história. Devolvi perguntando que moral ele achava que ela tinha. Ele respondeu algo que não me lembro. Encerrei o assunto dizendo: “se esta é a moral que você encontrou, é ela mesma que é. O que eu quis dizer está escrito, o resto é por sua conta”. Acrescento agora que não é preciso ter moral ou entrelinhas, pode ser apenas uma história. Acrescento também que nem sempre se poderá definir o perfil psicológico do escritor ou suas angústias e alegrias por meio de sua obra. Um livro pode conter apenas a história que conta, e um quadro pode conter apenas o que nele se vê.