Católicos acreditam que Santa Marina seja a protetora dos difamados, caluniados e perseguidos. Talvez por isso, a santa que tem as relíquias preservadas na igreja Santa Marina Formosa, na cidade italiana de Veneza, tenha entre os brasileiros um devoto fiel. Trata-se do paulistano Júlio Renato Lancellotti, 72 anos, o padre Júlio Lancellotti, coordenador da Pastoral do Povo da Rua de São Paulo, e referência nacional na defesa dos direitos humanos.

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De fala mansa e acolhedora, ela é vigário episcopal para a população de rua da Arquidiocese de São Paulo. Embora aplaudido, inclusive pelo Papa Francisco, o trabalho do pároco da Igreja São Miguel Arcanjo, no bairro da Mooca, gera incômodos nos que não reconhecem nas pessoas em situação de risco os mesmos direitos dos demais.

Por causa das ameaças e calúnias, o padre que tem 35 anos de sacerdócio precisou recorrer à polícia. Em janeiro, três jovens em situação de rua relataram que policiais teriam afirmado a eles, em tom ameaçador, que “a hora do Padre Júlio vai chegar”. O caso foi levado à Corregedoria da Polícia Militar. Em setembro, o próprio padre registrou um boletim de ocorrência após de ter sido ameaçado, verbalmente, por um motoqueiro. Além disso, ele enfrentou uma campanha de difamação promovida nas redes sociais pelo então candidato a prefeito de São Paulo, Arthur do Val, o Mamãe Falei.

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O candidato chegou a qualificar Lancellotti como “cafetão da miséria” e a acusar, sem provas, que ele fomentaria o tráfico na região. Por decisão da justiça eleitoral, os vídeos foram retirados das redes sociais.

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Em 2007, o padre comeu o pão que o diabo amassou: foi vítima de extorsão por um ex-detento da antiga Fundação Estadual do Bem Estar do Menor (Febem), que o ameaçava de denunciá-lo de pedofilia. Em 2011, quatro anos após O religioso ter a vida revirada pela polícia e Ministério Público, o rapaz e uma ex-funcionária da Casa Vida, também envolvida, foram presos, por extorsão, já que não conseguiram provar nada contra Lancellotti. Mas poucos brasileiros foram tão perseguidos por parte da imprensa, igrejas de outras religiões, colegas de batina e até políticos. Lancelotti precisou pedir proteção policial.

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Lancellotti coordena a Pastoral do Povo da Rua de São Paulo (Foto: Marlene Bergamo, Folhapress)

Poucos dias após registrar o boletim de ocorrência, em 10 de outubro, Lancellotti atendeu ao telefone. Era uma chamada do Papa Francisco, que ligou para prestar solidariedade. Francisco disse saber das dificuldades pelas quais o padre paulistano vinha passando e pediu para ele não desanimar. Francisco fez trabalho similar quando atuava em Buenos Aires.

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Não é mesmo fácil a vida de pessoas como o padre Júlio, empenhadas em resgatar a autoestima e dar mais dignidade para pessoas em vulnerabilidade, como em situação de rua, dependentes químicos, transexuais. O Brasil é o quarto país do mundo com maior número de assassinatos de ativistas de direitos humanos. Em 2019, foram 23 os brasileiros assassinados, de acordo com o relatório da organização Frontlile Defenderes, que reúne denúncias de ataques globais. O senhor careca, com cabelos brancos e que usa óculos, não se acovarda.

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“Quem é que mata Jesus, tirando dele a alegria de viver?”, questionou Lancellotti em discurso

Enquanto celebrante, padre Júlio se mostra sempre provocador. No dia 29 de novembro, Domingo do Advento, referiu-se ao evangelho de Marcos lembrando que não devemos nos deixar entorpecer por ideologias de dominação: 

– Hoje quem mataria Jesus? Quem é que mata Jesus doente, sem atendimento? Quem é que mata Jesus que não tem onde dormir, que não tem onde ficar? Quem é que mata Jesus, tirando dele a alegria de viver, tirando a possibilidade de ter uma casa, um emprego?

Lancellotti nunca foi de baixar a guarda. Foi expulso do seminário com 19 anos. Acabou estudando Pedagogia. Mas em 1985, aos 36 anos, estudou Teologia. Lembra com carinho de quando foi ordenado padre pelo bispo auxiliar Dom Luciano de Almeida. O lema de ordenação está escrito na Bíblia Sagrada, no primeiro livro de Coríntios, capítulo um, versículo 27: “Deus escolheu as coisas fracas deste mundo para confundir os fortes”.

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Apesar da idade, o que o coloca no grupo de risco ao coronavírus, ele não se omitiu frente à pandemia. Todos os dias é possível vê-lo em ação. Quando lhe é perguntado sobre o motivo de trabalhar com morador de rua, costuma responder: 

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– Não trabalho com morador de rua. Convivo com eles, que não são objetos de trabalho, mas pessoas com direito a sua dignidade.

“Estou aqui em nome dos odiados e perseguidos”, disse padre em premiação 

Recentemente, o padre Júlio Lancellotti conquistou o 7º Prêmio de Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns. O religioso recebeu 15.598 indicações de 16.643 sugestões recebidas pela prefeitura de São Paulo (93,7% do total). Nenhum outro vencedor alcançou tamanha votação nos anos anteriores. A premiação foi no Auditório da Secretaria de Justiça do Estado de São Paulo, no início do mês.

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Na cerimônia, o religioso reafirmou os posicionamentos. Lancelotti usou um boné preto com a bandeira da Palestina de um lado e do movimento zapatista mexicano do outro. Muito aplaudido pelos poucos presentes (em razão da pandemia), disse:

– Estou de boné não por insolência. É uma homenagem aos zapatistas e à luta do povo palestino. Estou aqui em nome da maloca, dos catadores, patota da rua, LGBTGQI+, presos, presas, mulheres trans. Estes grupos. Negros, indígenas, quilombolas. Os odiados e perseguidos. Eles que estão aqui comigo.

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Lancellotti durante evento que reuniu representantes de religiões e espiritualidades diversas para refletir sobre o papel das organizações religiosas na erradicação da fome e outros assuntos, no último dia 12 de outubro (Foto: Alice Vergueiro, Folhapress)

O Brasil não tem um censo sobre a população de rua. O desemprego, a precarização do trabalho, o uso de drogas e conflitos familiares tendem a piorar esta realidade. A ida para a rua é feita de sucessivas perdas: trabalho, dinheiro, amores. Para o padre Júlio, respostas únicas, como centros de acolhida, não respondem mais às reais necessidades deste contingente.

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Ele defende a necessidade de ampliar respostas que priorizem a autonomia, a não burocratização e a não institucionalização. Nesse sentido, a locação social e o acesso às políticas de moradia são fundamentais: 

– O binômio moradia e trabalho são inseparáveis.

Há uma semana do Natal, Lancellotti defendeu na missa que celebrava: 

– Nem deve existir mais abrigos, precisamos é de casa para todos. 

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A Igreja permite que um padre se aposente aos 75 anos. Lancellotti parece não estar muito preocupado com isso. Ele conta que acha curioso quando lhe perguntam quantas pessoas já tirou da rua: 

– Pergunto: “E você, já botou quantas?”.