Quatro escritores, com histórias e vivências diferentes, toparam compartilhar com o Donna sua visão especial sobre o Natal. Os textos de Mário Pereira, Lélia Pereira Nunes, Júlio de Queiroz e Mário Prata são um presente.
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A objetividade é a marca de Júlio de Queiroz. O ex-monge beneditino e autor de “cerca” de 18 livros (ele não sabe ao certo) aceitou o convite na mesma hora. Dois dias depois enviou não um, mas dois textos com uma mensagem de que poderíamos aprovar o que quiséssemos. Por isso, o autor é o único que tem dois contos no site.
Pacto renovado
José virou e revirou em suas mãos calosas a folha impressa. A dificuldade não era ler as palavras; era entendê-las. O que será que poderia querer dizer “mutuário”? Dobrou a folha cuidadosamente, enfiou-a no bolso da calça, feita e comprada sem concessão a qualquer moda. Deixou a repartição onde estivera, e, lentamente, encaminhou-se para o lugar em que tinha deixado a carroça de duas rodas, puxada pelo baio, um cavalo que já tinha prestado todo tipo de serviço e que, semiaposentado, servia a ele e a sua mulher, Maria de Qualquer Coisa, que estava esperando um filho.
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“Quem casa quer casa”, repetia-se José desde o casamento. Só que esta equação simples era entravada pelo fator que impedia a realização de um de seus termos: não havia dinheiro suficiente. José morava de favor no canto de um casarão de uns parentes, no interior de Bambuzal, um povoado que, por sua vez, era quase cidade dormitório de Xanxerê, no Oeste catarinense.
Passado o papel impresso por muitas mãos aparentadas e mal-adivinhado por muitas cabeças, havia se chegado à conclusão de que um tal de BNH iria construir uma porção de moradias para colonos da região. Se ele não fosse governo, só poderia ser homem de muitas posses, porque “construir mais de quarenta casas de uma só vez, não é coisa para qualquer um, não senhor”, argumentava um primo mais esclarecido.
Entretanto, as muitas consultas a familiares e as repetidas leituras da folha impressa não tinham conseguido esclarecer o jeito de se chegar à sonhada ocupação de uma dessas casas. Lá voltou José para Bambuzal e, ali, para a repartição onde lhe haviam dado o folheto. Por sorte, um servidor público mais interessado explicou-lhe tudo na linguagem em que José entendia.
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Assim, bem instruído, com o dinheiro que possuía amarrado num canto de um lenço grande e florido que sempre carregava no fundo da algibeira, José começou a juntar os documentos necessários para também tornar-se ocupante de uma das casas, que é o que o tal de “mutuário” queria dizer.
Como, no Brasil, o único documento que se recebe na hora é multa de trânsito, tudo de que José precisava implicou em vários retornos a Bambuzal. E como cada documento requeria a apresentação de um outro, cuja existência e apresentação os labirintos burocráticos só declaravam a indispensabilidade gota a gota, ir a Bambuzal e voltar para a “roça” tinham se tornado um exercício semanal.
Paciência, humildade e o hábito de ser preterido conseguiram, por fim, juntar os documentos tidos como necessários para que José tivesse a tão almejada casa. Mas havia um porém: a papelada tinha que ser entregue na sede do BNH, em Florianópolis, porque a repartição em Bambuzal não era importante bastante para isso, e a de Xanxerê estava provisoriamente sem encarregado. Outra vez, reuniões e pedidos de conselhos familiares se acumularam pra julgar a questão. Foi, por fim, decidido que, já que se havia começado com o assunto, o melhor mesmo era ir até o fim e viajar a Florianópolis.
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As economias foram juntadas. As roupas necessárias para a viagem foram arrumadas numa maleta velha, emprestada por um parente, mas uma parte delas acabou acondicionada em duas sacolas de plástico. Todos os documentos, agora enfeixados no que o pessoal do governo chamava de “processo”, receberam a honra de ficar sozinhos numa outra sacola, junto com o endereço da repartição na qual deveriam ser entregues.
Quase um dia depois de terem embarcado em Bambuzal, marido e mulher chegaram ao Terminal Rita Maria, em Florianópolis, extenuados por terem visto mais caras estranhas num só dia do que em toda suas vidas. Juntaram as sacolas de plástico e a preciosa carga de uma delas. Pelas contas de ambos, um dia deveria ser o suficiente para entregar o tal “processo” nesse outro tal de BNH, dar uma descansadinha num jardim público, fazer um lanche reforçado, pernoitar numa pensão e, sem mais o que fazer além de ter cumprido as determinações do governo, voltar para casa e esperar o papel que lhes garantisse a moradia quando esta ficasse pronta.
A senhora gorda, à qual, mal saltados do ônibus, perguntaram pelo caminho para chegar ao endereço do BNH, até que teve boa vontade.
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– É muito simples. Basta atravessar aqui em frente, pegar a Felipe Schmidt, ir até à Praça Quinze. Lá subam pela Visconde de Ouro Preto, depois peguem a Rio Branco. Deixem-me ver o papel. Pelo número não deve ser longe da Osmar Cunha. Não tem o que errar.
Só que quando saíram da rodoviária nenhum dos dois se lembrava de todos aqueles nomes e já tinham sido solenemente ignorados pelos motoristas de praça estacionados à saída do prédio, cuja experiência lhes assegurava que aqueles dois não era gente para táxi.
Pergunta daqui, pergunta dali, bastante tempo depois chegaram à frente do edifício do BNH. Bem que o nome estava escrito na fachada, numa placa que brilhava tanto que parecia ser de ouro.
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– Olha só a placa. Se for de ouro, a gente está no lugar certo. Porque se até a placa é de ouro, então esse BNH está com muito dinheiro. Pode fazer até mais de quarenta casas de uma só vez – comentou José, entusiasmado.
E, de ânimo renovado, os dois subiram uns poucos degraus e entraram no que lhes pareceu ser um salão de muito luxo. Bastava ver o brilho do chão! Não foram muito longe. Um homem sentado atrás de uma mesa perguntou-lhes do que se tratava.
– Nós viemos por causa da casa para morar. Minha mulher está para ganhar criança. O moço do BNH, lá em Bambuzal, disse que era para a gente trazer o…o…o processo aqui e, como foi mesmo que ele disse, Maria?
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– Dar entrada – ajudou a mulher.
– Mas hoje não é mais possível. Já passa das quatro horas da tarde. Ainda mais hoje que foi ponto facultativo – pontificou o estranho.
– Mas o senhor compreende, nós temos que voltar para Bambuzal, nós não temos ninguém aqui – esclareceu José.
– É uma pena, mas hoje não dá mais.
Diante da pobreza cristalinamente simples do casal, o contínuo resolveu falar a língua comum dos três e, ignorando o pernóstico burocratês que tinha empregado até então:
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– Hoje, além de sexta-feira, por que é véspera de feriado, só trabalhou quem quis. Amanhã, nem se fala. Nada do governo funciona nos sábados. Agora, só na segunda-feira que vem. E, assim mesmo, só depois das dez horas da manhã.
-Será que o senhor não conhece um lugar barato para a gente parar até segunda-feira? – indagou José. – Nós somos de Bambuzal e não conhecemos ninguém aqui. A gente é pobre. E da roça.
Diante do aspecto dos dois, as credencias eram completamente desnecessárias, mas foram tão limpidamente apresentadas que condoeram o funcionário.
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– Olhem. Vocês vão de volta para perto da Rodoviária. Procurem por esta rua.
Tomando de um pedaço de papel, escreveu: “Conselheiro Mafra”.
– Lá na Conselheiro tem umas pensões bem baratinhas. Nem todas são de família. Mas não se preocupem, as que não são de família não vão aceitar vocês. Venham na segunda-feira bem cedo que eu dou um jeito do processo de vocês ser um dos primeiros a dar entrada. Vocês vão poder voltar para casa ainda antes do meio-dia. Hoje não dá mais mesmo. Já está tudo fechado.
José e sua mulher refizeram a via-sacra de perguntar e não receber resposta; do mostrar o papel escrito pelo funcionário uma meia dúzia de vezes. Cada vez, a pessoa inquirida sabia bem onde era a tal de Conselheiro. O difícil era poder localizá-la para quem, como aqueles dois, não conhecia nenhum dos parâmetros necessários. Mas ao cair da noitinha chegaram nela.
A rua fervia de gente, na movimentação típica de uma dessas ruas que jamais se esvaziam completamente e que, além disto, são corredores obrigatórios para aqueles que, terminado o trabalho, querem mais é enfrentar a derradeira e pior batalha de quem trabalha fora: voltar para casa. Nessa situação, ninguém está disposto a dar muitas informações.
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– Pensão? Lá para cima. É só continuar indo em frente.
Só que esse ‘em frente’ continuava muito complicado. E longe. Por fim o casal chegou à frente de uma casa assobradada e precisando de pintura, com uma porta larga e aberta, ao lado da qual se lia “Pensão Santa Catarina- Familiar”.
Subiram cinco degraus pensão adentro. Logo na entrada surgiu-lhes um homem grandalhão e gordo, que, olhando-os do alto a baixo, lhes perguntou:
– De que se trata?
– Nós viemos de Bambuzal e vamos precisar pernoitar até segunda-feira de manhãzinha. Só pernoite. O farnel, a gente trouxe.
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– Infelizmente, estou com a casa lotada. Dezembro é tempo de férias. Nessa época, os turistas lotam tudo. Neste mês, quem não é turista, é gente quem vem do interior fazer compras para as festas.
-O senhor nos ajude. Minha mulher está para ganhar nosso filho. Nós somos de Bambuzal, lá no Oeste, e não conhecemos ninguém aqui. É só por duas noites. A gente não incomoda, não senhor. É só para pernoitar – reiterou José.
Nisso, uma voz feminina e imperiosa fez-se ouvir:
– Ó Carlos, vem me ajudar!
E como o convocado se demorasse, a dona da voz, uma grandalhona acostumada a mandar e a ser obedecida com presteza, enfiou a cabeça na cortina de contas que separava a assim chamada recepção do resto da casa e também perguntou de que se tratava.
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– Esse casal quer pernoitar. Mas já expliquei que está tudo lotado.
A mulher, analisando os estranhos à sua frente, confirmou com a cabeça.
Encorajado pela presença da mulher, Carlos argumentou: – do jeito que estamos lotados nem parente nosso se aparecesse por aqui a gente ia poder hospedar. São as férias de fim de ano.
Ouvindo isto, Maria abaixou-se pesadamente para recolher as três sacolas e José se apressou para ajudá-la a baixar os poucos degraus que os levariam de volta à calçada e à continuação da busca.
– Quanto é que vocês têm de dinheiro? – era a voz acostumada a ser obedecida, dirigindo-se aos dois.
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José não pestanejou. Tirou o lenço florido do bolso e ia começar a desatar o nó da ponta onde guardava a importância que trouxera, quando a mulher o interrompeu.
– Deixa pra lá! Ó Carlos, vem cá. Vocês, esperem aí.
Sumiram-se os dois atrás da cortina de contas de madeira, que ficou dançando, num vai-e-vem que se acalmava aos poucos.
– Mas é dentro de casa. – era a voz do Carlos.
– E daí? Com a porta da cozinha fechada, não há perigo. Depois, essa é gente de bem. Nisso eu não me engano nunca.
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– Estou admirado. Você não é dessas coisas.
-Sei lá. Olhando esses dois, lembrei de quando nos chegamos aqui, na pior, querendo começar a vida. Nós dois e o Júnior, por nascer.
-Vamos ter que esvaziar tudo – argumentou a voz do homem.
– Tudo, não. Só umas coisas. Nisso, o homem pode ajudar. A mulher não aguenta.
A cortina de contas de madeira tornou a balançar. Carlos surgiu.
– Como eu disse, quarto a gente não tem mesmo. Mas se vocês quiserem, a gente cede a garagem. Lá tem um colchão de casal enrolado num canto. Não tem conforto, mas é limpo e dá para dormir. Em Florianópolis, nesta época, não se pode chegar sem fazer reserva. De todo o jeito, tem uma privada perto. Simples, mas limpa. E, conforme eu disse, e a mulher concordou, vocês não precisam pagar nada por essas duas noites.
Se um dos dois forasteiros percebeu que a verdade tinha sido ligeiramente diferente da retratada por Carlos, não deu a entender. José pegou a maleta de papelão, cujo fechamento era reforçado por uma cordinha de náilon e tomando as três sacolas das mãos de sua mulher, seguiu o dono da casa.
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A garagem era o que garagem de pobre costuma ser: mais do qualquer coisa, depósito de trastes. Naquela, empilhadas, cadeiras sem fundo e mesas de pés estropiados. Sobre estas, um venerável colchão de crina reinava enrolado. Ainda havia, além de um fusca de uma das mais antigas safras, uma motocicleta não muito mais nova que este.
Carlos, acionado pela decisão da mulher, pôs mãos à obra. Ajudado por José, afastou alguns móveis velhos, empilhou outros, de modo que entre o fusca e a motocicleta, arredada com muitos bufos e exclamações, foi criado um espaço, que o colchão de crina, abaixado e estendido, ocupou.
A dona da pensão entrou na garagem com alguma roupa de cama e a entregou à forasteira. Esta, com gestos lentos, pesados pela gravidez avançada, fez a cama e dobrou a coberta grossa e forte – como as usadas no Oeste – lembrou-se.
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Pouco depois a dona da casa voltou.
– Olhem, vou aprontar dois pratos de comida para vocês. E virando-se para Maria, acrescentou:
– Vou deixar um balde com água quente em cima do fogão. Se você precisar, pode usar.
A mulher saiu, acompanhada por seu marido. Maria sentou-se no colchão de crina e reclinou-se. Tinha sido um dia muito cansativo. Havia quase um dia inteiro na estrada. Agora era só esperar para poder voltar para casa a tempo.
Mais tarde, quando, pelo diminuir do ruído de pratos e panelas e do esmaecer dos comandos determinados da dona da pensão, sentiram que o movimento na sala de refeições tinha rareado, José foi até a cozinha buscar o jantar para os dois. Na volta, Maria não quis comer. Não estava para isso.
Jantado, José levou os pratos e trouxe o balde com água quente. No banheirinho de serviço, assearam-se e preparam-se para o descanso possível.
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No meio da noite, Maria sentiu as dores do parto. Muito sem saber o que fazer, José voltou à cozinha e trouxe de volta mais um balde com água quente. Por sorte, a dona da casa ainda estava na sala. Ao ouvir barulho na cozinha, foi ver do que se tratava. José explicou-lhe. A mulher firmou o olhos nele e, passando julgamento rápido, ordenou:
– Encha outro balde d’água e ponha no fogo para ferver. Quando a água estiver fervendo me chame. Meu nome é Dona Laura. O resto, deixa comigo. Para isso, marido nenhum presta.
Resoluta, não sem antes ter juntado uma meia dúzia de panos de pratos, saiu com o balde d’água em direção à garagem. Pouco depois, ouviu-se o choro de um recém-nascido. Mais uma vez, Deus havia confiado um seu filho à humanidade. Outra vez, era noite de Natal.
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