Com 20 anos de magistratura na Vara de Família e Criminal em Santa Catarina, a juíza Débora Zanini acompanhou inúmeras histórias. O desejo de transformar o que viu e ouviu em um livro se concretizou com a publicação de Regime Fechado – Histórias do cárcere, lançado pela Editora Lura. O livro revela minúcias e curiosidades até então restritos a quem vivencia esse universo do encarceramento. Com uma linguagem direta e sem rodeios, a autora traz situações inusitadas, a exemplo de uma fuga frustrada, e também realidades cotidianas, como a rivalidade entre as facções e as gírias mais usadas. A magistrada revela casos reais, instigantes e por vezes trágicos, vivenciados por seus protagonistas: os presidiários.

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Confira uma entrevista com a autora:

Como surgiu a ideia para escrever Regime Fechado – Histórias do cárcere?

Tenho 20 anos de magistratura e sempre percebi que o campo do fórum, tanto da Vara de Família como a Criminal, era um campo muito rico de histórias. Historias tristes, felizes, dramas pessoais. Eu sempre pensava: ‘nossa, isso dava um livro, um filme’. No início da carreira eu pensava que precisava anotar para publicar um livro, mas acabava que eu não escrevia. E as histórias se perdiam, mas no final de 2018, atuando exclusivamente na área criminal há 8 anos, eu pensei: ‘agora eu vou colocar como um propósito de vida escrever um livro e vou fazer com histórias do cárcere’. Também sou corregedora dos presídios e das penitenciárias aqui do sul, Criciúma, e tenho muito contato com os agentes penitenciários e com os presos também. Pensei em escrever o livro contando não a história de vida dos presos, mas coisas que eles vivenciaram dentro do cárcere. Situações até surreais e que as pessoas de fora não sabem. Me reuni com os agentes penitenciários por várias vezes, os encontros eram gravados em áudio. Essas gravações serviram de base para seleção de histórias, foram 17. Foi um processo que iniciou no final de 2018 e no começo de 2019 comecei a escrever, continuei com as reuniões e fui escrevendo. Optei por contar as histórias mais inusitadas e diferentes contadas pelos agentes, inclusive o livro dá crédito para eles. Meu objetivo era mostrar para a sociedade — não só para o estudante de direito ou o profissional da área — os bastidores de uma cadeia.

Por que optou contar as histórias através do olhar dos agentes e não dos presos?

Pois é, não queria contar histórias tristes de vida, por exemplo, porque eu não tenho uma visão romântica da cadeia. Eu não costumo romantizar o crime. Acho que as pessoas têm o livre arbítrio, tem as suas escolhas e ninguém é obrigado a fazer coisas erradas. As circunstâncias não levam ao crime. Eu queria mostrar a realidade nua e crua. Na verdade, não extraí da visão dos agentes, eu ouvia as histórias e trazia para minha visão, com as minhas palavras e com a minha percepção daquilo que eles me contaram, uma visão real do que acontece.

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Débora Zanini
(Foto: Divulgação)

E quais são as histórias inusitadas que aparecem na publicação?

Como meu objetivo não era romantizar, trago mais histórias engraçadas, como a de uma presa que tinha um sapo e uma cobra como animal de estimação, já que o presídio feminino fica em uma zona rural. Preso que voltou no terceiro dia da saída temporária, por segurança, poque achava que dentro da cadeia era a melhor realidade para ele. Da presa que teve o rosto queimado por uma rival de cela com água fervendo, essa uma história bem trágica. Tem também a menina que nasceu na cadeia. A mãe era uma detenta grávida e a bebê cresceu até os dois anos lá dentro porque não conseguia adoção. Ela falava que era o casarão, ela tinha medo de homens porque cresceu no presídio feminino e só via mulheres. Teve também a história de um tetraplégico que fingiu a deficiência para conseguir a prisão domiciliar. Essa foi surreal! Ele enganou até o médico. Conseguiu um laudo atestando que era tetraplégico e depois foi pego roubando no centro de Criciúma. Ele enganou até os colegas de cela e quando voltou para a cadeia foi jurado de morte por ter feito todo mundo de bobo. Tem a histórias dos gatos que os presos achavam que tinha microchip instalados na perna para captar as conversas deles.

Devem existir outras milhares de histórias, planeja escrever outros livros?

Como é um projeto demorado e cansativo, e que ainda preciso conciliar com o trabalho do fórum, talvez esse ano faço reuniões para colhetar novas histórias, mas escrever só no próximo ano ou 2022. Ainda quero trabalhar na divulgação do Regime Fechado, lançado no fim do ano passado. É o que é importante ressaltar é que parte da renda com a venda dos livros será doada para a Casa Guido, entidade filantrópica de Criciúma. A entidade cuida de crianças em tratamento oncológico e abrange toda a região sul de Santa Catarina. Como esse livro foi um presente pessoal, financiei toda produção, pensei em fazer dele também um presente para outras pessoas. Boa parte dos exemplares está em exposição na casa Guido para serem comercializados.