Uma sentença publicada em março por uma juíza do trabalho de Santa Catarina virou objeto de contestação levado ao Conselho Nacional de Justiça e à Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo. Isto porque, ao julgar uma ação movida por uma fazenda da cidade de São Joaquim contra a União, a magistrada Herika Fischborn não se limitou a avaliar aspectos legais.

Continua depois da publicidade

A serviço da 1ª Vara do Trabalho de Lages, ela anulou uma série de autos de infração que noticiavam condições precárias nas instalações de uma plantação de maçãs, onde mais de 150 pessoas trabalhavam em 2010 — algumas situações comparadas a trabalho escravo.

Ao fundamentar a sentença, a juíza anotou observações controversas e de caráter pessoal. O caso ganhou repercussão ao ser noticiado pela ONG Repórter Brasil esta semana. Uma das autuações indicava que os empregados da fazenda tiveram as carteiras de trabalho retidas por mais de duas semanas, desrespeitando o prazo de 48 horas previsto pela Consolidação das Leis do Trabalho.

Apesar de reconhecer a infração, a juíza entendeu que a aplicação de multa não seria razoável nem proporcional.

Continua depois da publicidade

—O Juízo constata zelo por parte do empregador. Isso porque é fato notório na região serrana de Santa Catarina que tais trabalhadores são, em sua maioria, viciados em álcool e em drogas ilícitas, de modo que, após receberem o seu salário, saem no comércio de São Joaquim e redondezas, gastam todo o dinheiro do salário, perdem seus documentos e não voltam para o trabalho, quando não muito praticam crimes — escreveu.

No mesmo raciocínio, a magistrada ainda aponta que reter as carteiras de trabalho causava, na realidade, “benefício à sociedade”, que o dano existe “porque ocorrem assaltos, homicídios” e que o “consumo de drogas é intenso, incluindo o crack”.

A ação julgada pela juíza foi movida pelos donos da fazenda com a intenção de anular multas e autos de infração aplicados por auditores fiscais do trabalho durante a inspeção de 2010. A fiscalização apontou funcionários sem registro e atestado admissional, expostos a riscos em ambientes insalubres e com salários atrasados.

Continua depois da publicidade

Uma decisão do Tribunal Superior do Trabalho (TST, instância máxima no direito do trabalho) já havia desconsiderado os apontamentos de trabalho escravo na fazenda. Coube à juíza de Lages, então, avaliar os demais autos de infração que não dissessem respeito à prática de trabalho escravo. Além de anular as demais autuações, a magistrada determinou que a Polícia Federal instaure inquérito para apurar a prática de crime por parte dos auditores fiscais do trabalho durante a inspeção.

Segundo anotado pela juíza, houve crime porque os fiscais do trabalho “não descreveram os fatos tal como ocorreram, não os enquadraram da forma legal devida e forçaram o enquadramento como trabalho escravo”.

“Fragiliza todo um trabalho de combate ao trabalho escravo”

Inconformada com o teor da sentença, a auditora fiscal do trabalho Lilian Carlota Rezende, que chefiava a ação na época e foi citada pela juíza, formalizou protestos no Tribunal Regional do Trabalho em SC e no Conselho Nacional de Justiça. No último dia 15, o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait) formalizou uma denúncia à Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae).

Continua depois da publicidade

Procurada pelo Diário Catarinense, a auditora Lilian lamentou que as provas colhidas não tenham sido consideradas e apontou que a sentença “desqualifica todo o trabalho de auditoria fiscal”.

—Se fosse só a minha parte pessoal, eu faria o que estou fazendo. Denúncias para CNJ, MPF por denunciação caluniosa. Mas me preocupou o quanto este tipo de posicionamento fragiliza todo um trabalho interinstitucional de combate ao trabalho escravo. Isto demonstra um posicionamento do Judiciário que vai contra toda essa tentativa de melhorar as condições de dignidade do trabalhador — criticou.

A Conatrae informou já ter conhecimento do caso e que, inclusive, o assunto será discutido na próxima reunião da comissão, dia 18 de novembro, em Belém (PA). No encontro, os membros devem decidir se haverá posicionamento político sobre o assunto.

Continua depois da publicidade

Em resposta ao DC, o Tribunal Regional do Trabalho informou que a corregedoria local não pode interferir quando a conduta do magistrado está restrita às manifestações no processo.

O Conselho Nacional de Justiça informou que ainda não há nada na corregedoria em relação à juíza Hérika Fischborn.

O Sinait confirma a denúncia encaminhada ao Conatrae, mas prefere não se manifestar por enquanto.

A reportagem tentou contato com a juíza Hérika Fischborn, mas não teve sucesso. Segundo o TRT, a magistrada está afastada das funções porque se recupera de um acidente de trânsito sofrido no mês passado.

Continua depois da publicidade

Associações se manifestam por nota

Em nota oficial publicada nesta quarta-feira, a Associação dos Magistrados do Trabalho da 12ª Região (Amatra 12/SC) e a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) reforçam que todas as decisões proferidas pela Justiça do Trabalho apontaram que não houve trabalho análogo ao de escravo na fazenda de São Joaquim.

—Tanto pelos representantes da Polícia Federal quanto do Ministério Público do Trabalho, que participaram do inquérito policial, bem como pelo próprio representante do MPT, que atuou no processo judicial, foi declarado que os fatos não ocorreram da forma apontada nos autos de infração lavrados pela auditoria fiscal, o que foi confirmado em decisões proferidas pelas três instâncias da Justiça do Trabalho — diz a nota.