Ferrenho fiscalizador do papel do Estado, especialmente em Joinville, onde cuida da execução penal de 5 mil processos, o juiz João Marcos Buch, 45 anos, ganha destaque em decisões que evidenciam o lado humano.

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Foi assim ao liberar uma detenta com HIV na fase terminal para visitar o filho e ao defender medidas alternativas ao invés do encarceramento.

Natural de Porto União, juiz há 21 anos, sendo 14 anos exclusivamente na área criminal, o magistrado é solteiro, curte esportes radicais, escreve crônicas e nas férias já visitou cadeias no exterior para aprimorar o conhecimento.

Com uma rotina diária de até 12 horas de trabalho, ele recebeu a reportagem em seu gabinete. O juiz afirma estar preocupado com o crescimento do estado paralelo das facções criminosas.

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O governador Raimundo Colombo admitiu que o Primeiro Comando da Capital (PCC, facção criminosa de São Paulo) tenta se instalar em Santa Catarina. Qual a sua percepção?

Hoje, enfrentamos essa dificuldade com o PCC, que está vindo para SC através do envio de pessoas para o Estado, para que cometam crimes e entrem no sistema, porque o PCC pretende conquistar território. Em SP, por incrível que pareça, a partir do momento em que o PCC passou a comandar o sistema prisional, o número de homicídios dentro do sistema diminuiu, inclusive em São Paulo houve redução de homicídios porque as pessoas prestavam contas ao PCC. É uma contradição muito grave. A facção se arvora em um grupo político agora defendendo o cumprimento da execução penal, quando na verdade quem deveria defender isso é o Estado para enfraquecer a facção criminosa.

Há como trabalhar o crime organizado com medidas preventivas?

Não sou especialista em crime organizado, mas existem pessoas especializadas que apontam medidas concretas de como diminuir o poder das facções. A longo prazo, com a presença do Estado, a diminuição das superlotações. A curto prazo, uma triagem, pois o primário não pode ficar junto do reincidente exatamente para não entrar nesse jogo.

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Qual o perigo com o PCC chegando a SC?

Chegar ao ponto em que o Estado não consiga mais ter o controle do sistema prisional.

É possível a recuperação de criminosos?

Totalmente, vejo isso o tempo todo. A penitenciária de Joinville tem 640 detentos. Aí se diz assim: “mas a penitenciária só aceita preso bonzinho”. Negativo. Tem gente ali condenada a 80, 90, 100 anos de prisão, pessoas perigosas. Porém, em todo o sistema, você retirando esse percentual de 10% – eu diria empiricamente – do universo do sistema prisional, que são pessoas com perversão ou psicopatia ou que não têm mais nada a perder, o restante da massa carcerária, com oportunidade de educação, qualificação para o trabalho e perspectiva de que conseguirá manter a família através do trabalho, isso vai acontecer. A penitenciária prova isso, onde o índice de reincidência é de 15% e a média de reincidência é de 60 a 80% no sistema prisional. Se você entra no sistema e não tem condições de ter um sabonete, de receber visita, vive massificado numa superlotação, tem de se proteger, tem de se unir. Aí vai se unir a uma facção.

Há alguma diferença entre os tipos de crime para essa recuperação?

Eu colocaria a única distinção nos crimes contra a dignidade sexual. Fogem da regra do que leva uma pessoa à prisão. O tratamento é diferenciado. A ciência tinha que tentar avaliar isto.

O senhor visita as celas?

No mínimo, faço três a quatro visitas por mês. Vou com minha assessoria, entro nas galerias, tenho uma conversa franca. Não vou passar a mão na cabeça. Digo: “Até as pessoas que estão livres não conseguem acesso à saúde, como vocês vão querer?” Só que não é justificativa, temos que tentar que eles tenham acesso. “Ah, doutor, mas você tinha que me perdoar, tenho que ajudar minha família lá fora”. Digo que não há a menor possibilidade e é preciso cumprir a pena.

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Buch com o então ministro do STF Joaquim Barbosa, em missão do Conselho Nacional de Justiça no Presídio Central, em Porto Alegre.

O senhor proibiu em Joinville a revista íntima. Agora, a OAB nacional reforçou. Ao mesmo tempo, o Departamento de Administração Prisional (Deap) diz ser útil para evitar a entrada de armas e drogas. Como agir?

Com eficiência. Existem escâneres corporais. Tomei conhecimento que, em razão das pressões populares, da OAB, da Justiça, dos organismos de direitos humanos, o Estado alugou. Aí questiono a locação porque entendo que deveria ser aquisição, mas finalmente o Estado, por licitação, locou escâneres corporais.

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É mesmo uma humilhação a revista íntima?

É humilhante não só para a visita, mas para quem faz. Imagine um funcionário trabalhar todos os dias nessa situação vexatória, revistando pessoas que têm de se despir. Alguns Estados já vetaram isso, como em Goiás. Em São Paulo há lei, estão tendo que aplicá-la. A partir do momento em que o escâner for usado, vamos perceber que os celulares continuam entrando, eventuais armas e drogas também. Aí vamos ter que cortar na própria carne para ver o que está fazendo entrar.

Não são somente familiares que levam?

Não posso generalizar. Conheço os agentes penitenciários, conheço pessoas que trabalham com honestidade. A maioria são pessoas que acordam de manhã querendo fazer o seu trabalho certo. Mas em todas as áreas, no Judiciário, no Legislativo, no Executivo, existem pessoas que não agem de acordo com a lei.

Como surgiu a intenção de ser um juiz?

Na faculdade. Tive a infância em Porto União e fiz a faculdade em Blumenau, na Furb, com 17 anos. Trabalhei antes (de ser juiz) como estagiário e advoguei um período, em Blumenau. Foi o tempo de fazer a faculdade e, durante o curso, a partir do segundo ano, já me identifiquei com a magistratura. Quando comecei a tomar conhecimento das carreiras jurídicas e conheci juízes, falei: “É isso o que eu quero para mim”.

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De onde vem a identificação?

Não tenho menor ideia de onde vem isso. Tenho que fazer terapia para saber por quê…

O senhor faz terapia?

Não, faço na escrita. Escrevo crônicas e, através delas, consigo expurgar as bruxas. Até mesmo no contato com os colegas, conversando o tempo todo com juízes amigos, nós trocamos ideias e refletimos, desabafamos, porque tratamos o tempo todo com o melhor e o pior do ser humano.

Juiz erra também?

Claro que erra, mas é preciso procurar não errar. O erro que um juiz comete pode refletir em vidas lá fora. E, para não errar, você tem de ter sobriedade e dedicação completa.

No começo, na vida estudantil, em simulação de audiência em que atuou como promotor.

O senhor pratica esportes, atividades radicais?

Já fiz, mas nos últimos anos não deu mais tempo por causa da execução penal. Mas praticava paraquedismo, saltava. Fiz vários saltos sozinhos, também mergulho. Normalmente ia na Ilha do Arvoredo fazer mergulho.

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Já sofreu ameaças?

Já condenei muita gente, já soltei muita gente. Por onde ando, as pessoas que me abordam, podem ser até pessoas condenadas por mim, vêm numa atitude muito simpática me agradecer ou tirar dúvida. Quando vou ao presídio, as conversas são com respeito. Porém, quando eu trabalhava na 2a Vara Criminal, que é especializada em crimes contra a administração pública, quando julguei autoridades, sofri ameaças que diziam assim: “Cuidado, não vai durar”.

O senhor tem uma rotina diferenciada?

Sim. Todo juiz tem que trabalhar dessa forma. Claro que é preciso desligar a partir do momento em que deixa o trabalho. Porém, é preciso um comportamento adequado, senão não vai haver respeito.

A criminalidade está crescendo na sua avaliação?

A violência está crescendo, os encarceramentos estão crescendo mais. Eram 250 mil há 12 anos, hoje são 600 mil. Pode chegar a 1 milhão em 2020. Fora os foragidos e os que estão em regime aberto. O que vejo na sociedade é uma insatisfação muito grande, mas qual é o caminho? É isso o que as pessoas precisam compreender. Defendo um direito penal mínimo, que a pena seja para aquelas pessoas que colocam em risco a vida de outras pessoas.

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O senhor defende a prisão para crimes realmente graves?

De pessoas que colocam em risco a vida de pessoas.

De corrupção também?

Trabalhei sete anos numa vara especializada em crimes contra a administração pública. O que repararia o dano e evitaria seria monetariamente, a descapitalização. Estado e polícia tinham de se aprimorar de forma a conseguir ir em busca das verbas desviadas, reparar o dano causado, seja com sequestro de imóveis, veículos.

O senhor é contra a redução da maioridade?

É lamentável. Após 25 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente não se entrou em um Centro de Atendimento Socioeducativo para ver as dificuldades. Vamos entrar nesses centros para saber o que está ocorrendo com os jovens, as famílias, as escolas. É fácil trabalhar com aluno bom, mas o objetivo do professor e da escola é trabalhar com aluno problemático. É recuperar e resgatar aquele problemático e não jogá-lo para fora. Falta consciência e razão.

O que pensa sobre a liberação da maconha?

Eu diria que o exemplo do Uruguai deve ser pensado. Morrem hoje no mundo mais pessoas em razão da guerra contra o tráfico do que em razão das drogas. O Brasil tem de começar a olhar o exemplo do Uruguai onde, ao que parece, o índice de violência vem diminuindo. Não é com legalização, mas uma regulamentação que faça com que as pessoas que usam maconha venham para o debate.

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O que é mito e fato na proporção dos menores em crimes?

Eu diria, empiricamente, que a participação em roubos contra a pessoa era grande, 15 a 20% (na época em que era titular da 2a Vara Criminal de Joinville). Mas existem dados que apontam 2 a 3%. Esta é outra questão: estão discutindo a redução da maioridade penal sem dados concretos. Isso é uma leviandade.

Qual seria o cenário das cadeias se precisassem absorver os jovens de 16 e 17 anos?

Um caos. O presídio (de Joinville) é superlotado, ainda existem pessoas dormindo em colchões no chão. Não existem celas individuais. Tive a oportunidade de conhecer uma penitenciária na França de segurança máxima. São celas individuais. Eles evitam que exista uma massificação. Eu não sei até que ponto eu permaneceria na execução penal se me visse obrigado a executar pena de um jovem de 16 anos onde hoje eu vejo que as pessoas cumprem pena. Seria um retrocesso histórico humano, internacional, terrível.

Entre as polícias, é enorme a quantidade de pessoas que defendem a redução.

Eu compreendo porque o policial sai para a rua e sai numa situação grave, temerário da vida dele e das pessoas, fazendo seu trabalho e vendo que o trabalho dele não está surtindo efeito. Então, ele acredita que, com a prisão, vai surtir efeito. E não vai. Porque as prisões têm aumentado e a violência não tem diminuído.

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Dados da Secretaria da Justiça e Cidadania apontam que 57% dos presos trabalham. O senhor reconhece que houve um avanço?

Não é verdade, não tem (57% dos presos trabalhando). Talvez sejam dados que aproveitem presos que trabalham ilegalmente, sem remuneração. São empresas que aproveitam a mão de obra e pagam por produtividade quando, na realidade, o convênio tem de ser com o Estado, o repasse tem de ser para o Estado, e o Estado tem de fazer o pagamento retendo 25% para o investimento na infraestrutura da unidade prisional. Quando vou no presídio, o primeiro pedido deles é poderem ser transferidos para a penitenciária para poderem trabalhar. E, mesmo na penitenciária, não há possibilidade de que todos trabalhem. Sou absolutamente a favor do trabalho como fator de resgate da dignidade, ao lado da educação, do atendimento à saúde.

E os excessos fora das cadeias, por parte da polícia, os confrontos com mortes?

Me preocupo muito com isso. Entendo que a polícia, a militar especialmente, é aquela que nos protege. O primeiro número que discamos é o 190 porque queremos proteção. Mas a polícia tem de ir para as ruas sem a ótica de guerra. Já ouvi governador falar que a Polícia Militar está em guerra, sai para as ruas em guerra contra o tráfico, contra a criminalidade. Não é isso. Numa guerra, quem morre são inocentes. A polícia tem de ir às ruas proteger a todos e usar dos meios necessários para conter a violência, nada mais, agir de acordo com a lei.

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Os homicídios em Joinville podem bater outro recorde até o final do ano. Como estancar os altos índices, sendo que aumentaram também em outras grandes cidades como Chapecó, Criciúma?

Em Joinville, o que se indica é que existem algumas facções disputando territórios. Não seria PGC, PCC. Talvez estejam por aí, mas não há claramente isso. Não existe solução a curto prazo. Essas forças-tarefas, não sou simpático a elas, porque vêm, acontecem e, quando retornam, tudo volta a ser como era antes. O que precisa é o investimento em recursos humanos da polícia judiciária. A Polícia Civil precisa investigar, chegar nos comandos dessa cadeia criminosa.

O senhor expõe opiniões em debates, redes sociais, artigos de jornal. Há resistência dos demais magistrados?

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Não. Talvez já tenha existido, mas hoje existe um indicativo do Conselho Nacional de Justiça e do Supremo Tribunal Federal de que o Judiciário precisa se mostrar, abrir suas portas, mostrar o trabalho que tem sido feito. E, se precisar emitir opinião dentro da ética, que emita essa opinião.

Isto vale também para sua postura crítica ao governo do Estado?

Eu procuro ter o cuidado de não ser leviano nas coisas que digo e nem ser desrespeitoso. Quando digo que a Secretaria de Justiça e Cidadania não dá a atenção necessária para a questão do PCC, não estou desrespeitando a secretária. Quando digo que a secretária de Justiça, Ada de Luca, tem dificuldades técnicas e de capacidade para gerir uma pasta tão importante, não estou desrespeitando a pessoa da deputada Ada de Luca, estou dizendo que, naquele cargo, ela não seria a pessoa mais adequada a estar.

Na Câmara de Vereadores, em Joinville.

O senhor lançará um novo livro em agosto: Crônicas, Relatos e Vivências. Utiliza sua vida pessoal nas decisões?

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Não existe como um juiz desvincular sua vida das decisões que toma. Não conscientemente, mas eu tenho certeza de que, inconscientemente, julgo muitas coisas conforme as experiências que vivi, as felicidades e traumas que tive. O juiz, conforme foram suas experiências, vão ser suas decisões. Por isso, o juiz precisa se policiar o tempo todo porque, senão, será um livre arbítrio.

Em que momento escreve?

À noite, quando chego em casa. Às vezes, quando o dia é muito difícil ou há uma situação pitoresca, chego em casa e rapidamente faço um esboço. Aí, final de semana ou depois, dou uma revisada. O livro será publicado com o mais absoluto respeito às pessoas que cruzaram a minha vida, mas é do dia a dia de um juiz.

Como foi sua infância?

Normal, de classe média, com os irmãos brigando. Somos em seis. Na minha família, tenho um tio que foi advogado, da área política em Porto União, três vezes prefeito lá. Essa era a visão da advocacia que eu tinha.

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Incomoda quando o apontam como um juiz que “passa a mão na cabeça”?

Não. É algo a que tenho que me submeter como uma pessoa pública. Quando você publica um artigo, uma opinião sua, você tem que se submeter, saber que aquele artigo pode ser deturpado. Por isso insisto em dialogar com as pessoas.

Tem medo?

Não. Já andei sob escolta uma época passada, tive uma série de orientações sobre como fazer, mas não posso ser prisioneiro.