Varzaqan, Irã – Enquanto a caravana de veículos particulares seguia rumo ao norte pela rodovia Teerã-Tabriz, acompanhando os cinco caminhões que eles haviam enchido com produtos emergenciais para as vítimas do mortal terremoto duplo que atingiu o norte do país em agosto, um grupo de jovens iranianos – uma mistura de modernetes, membros de um clube fora de estrada e filhos de famílias abastadas – se sentia como rebeldes com causa.
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Nenhuma das pessoas nos carros parecia saber exatamente como aquilo começara nem se lembrar como todos se conheceram nos últimos dias sem dormir. Eles ficaram amigos enquanto enfrentavam longas filas no estacionamento do prédio de uma empresa privada, passando por caixas cheias de cobertores e brinquedos.
Cheios de energia com as acusações disseminadas segundo as quais as organizações oficiais de ajuda do Irã não estavam auxiliando corretamente os sobreviventes, eles, e centenas de outras pessoas, organizaram de forma espontânea uma ação de caridade em 48 horas usando mensagens via SMS, Facebook e telefonemas para coletar dinheiro e produtos.
Porém, em vez de entregar os donativos à Sociedade do Crescente Vermelho Iraniana, ligada ao governo, como as autoridades pediram na mídia estatal, esses jovens estavam determinados a transportá-los às aldeias mais remotas nas montanhas mais devastadas pelos terremotos, que atingiu uma parte rural do país na qual se fala turco. Mais de 300 pessoas morreram e milhares ficaram desabrigadas.
– Estamos levando esta ajuda porque as pessoas acreditam que a levaremos diretamente às vítimas. – disse Pouria, 31 anos, sentado no banco do passageiro do veículo utilitário esportivo do amigo.
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A exemplo das outras pessoas entrevistadas para esta reportagem, ele pediu que o sobrenome não fosse mencionado. Contudo, os jovens iranianos aceitaram que fossem tiradas fotografias de sua viagem de 15 horas de Teerã à zona do terremoto e também da distribuição dos produtos.
No Irã, onde o Estado está envolvido em todas as camadas da sociedade, é um fato excepcional um grupo de jovens organizar uma operação pública para ajudar vítimas de um desastre.
Pouria, gerente de escritório de ombros largos, disse ter feito uma viagem similar, em 2003, a Bam, cidade ao sul onde um terremoto de grande magnitude matou 25 mil pessoas, muitas das quais soterradas pelos escombros. Segundo Pouria, depois de o mundo dar dinheiro para ajudar, ele viu uma boa parte dos recursos desaparecerem nos bolsos errados.
– Bam foi uma lição para mim – Pouria afirmou ter lembrado à esposa depois das notícias sobre os terremotos de agosto. – Nós, pessoas comuns, deveríamos tomar a iniciativa.
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Seu sentimento ecoava nas dúvidas expressas por muitos iranianos, até mesmo entre altos líderes e legisladores, quanto à capacidade das organizações de ajuda oficiais. Parlamentares que representam a região afetada pelo sismo reclamaram de desabastecimento às agências de notícias iranianas. O Parlamento convocou o diretor do Crescente Vermelho para dar explicações.
O líder supremo do Irã, o aiatolá Ali Khamenei, visitou recentemente a área atingida e pediu para o governo redobrar o trabalho de envio de auxílio. Mais tarde, ele foi além, apoiando a entrega particular levada a cabo pelos membros do comboio, mas eles não sabiam disso.
Quando a caravana se deteve na metade do caminho na madrugada de uma sexta-feira recente, o grupo, formado por quase duas dúzias de homens e mulheres de 20 e poucos e 30 e poucos anos, percebeu que o plano ambicioso os colocara numa situação difícil.
Eles não tinham autorização especial do governo além de um papel afirmando que 12 dos carros pertenciam a um clube fora de estrada registrado oficialmente. O grupo temia que as forças de segurança pudessem confiscar os produtos para distribuí-los, e existiam relatos não confirmados de inquietação em alguns povoados.
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Ao ouvirem a exposição de dois homens que surgiram como seus líderes não oficiais, ficou aparente que eles precisavam fazer uma escolha: manter o plano original e distribuir a ajuda por si mesmos ou cooperar com as autoridades locais.
– Devemos isso a quem nos deu dinheiro para entregar a ajuda a quem realmente necessita – disse Hossein, 27 anos, presidente do clube fora de estrada. – É isso o que importa.
Quase todos fizeram gestos de aprovação.
– Sugiro que trabalhemos com a Sociedade do Crescente Vermelho, afinal – propôs Hamed, 34 anos, filho de um industrial. – Eles sabem o que estão fazendo.
No fim das contas, os três amigos sentados com ele em seu Lexus importado eram membros voluntários da organização.
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– Eles têm experiência para lidar com desastres, vocês não – afirmou Hamed. – Nós precisamos agir com rapidez. As pessoas estão com frio e precisam de cobertores.
Antes de Hamed partir em alta velocidade, ele e os amigos vestiram roupas especiais com o logotipo do Crescente Vermelho, colocando uma lanterna vermelha sobre o teto do veículo.
– A gente se vê lá – ele afirmou ao resto do grupo, que viajava principalmente em veículos velhos.
De olhos vermelhos e cansados, os membros do comboio chegaram à região de Varzaqan, um dos epicentros dos dois terremotos. Pontilhando os morros, onde trigais são agitados pelo vento, várias aldeias estão em ruínas. Um agricultor ordenhava a vaca enquanto uma procissão fúnebre cruzava um caminho empoeirado nos arredores. Barracas brancas dadas pela Sociedade do Crescente Vermelho eram vistas em toda parte.
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– Por favor, chega de água – um morador falou, enquanto membros do grupo começavam a distribuir garrafas de água. – Temos tanta que a estamos dando às ovelhas.
Os membros do comboio passaram a manhã em busca de necessitados. Aconteceu uma cena caótica quando Hamed e seus amigos abriram um dos caminhões no povoado de Kivi, onde os residentes quase pisotearam uns aos outros para pegar lanternas e absorventes femininos. Sozinho, Hossein encostou outro caminhão cheio de remédios e os deu a uma clínica local, levando os outros membros do grupo a protestar por ele não os haver consultado.
– É claro que enfrentamos problemas – disse Pouria, com suor pingando do rosto, enquanto caminhava por casas destruídas em meio a nuvens de poeira. – É uma experiência nova para todos nós.
Perto do pôr do sol, depois que o dono de uma fábrica local os convidou para passarem a noite nas dependências, as frustrações explodiram. Hamed começou a gritar com Hossein, numa sequência de xingamentos e empurrões, que terminou com os dois apertando as mãos, concordando em discordar. Hamed e os amigos do Crescente Vermelho deixaram o resto do grupo com uma montanha de latas de leite em pó, cobertores e roupas.
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– Nós, iranianos, não nos entendemos – Pouria afirmou, suspirando – mas nos amamos.
Na manhã seguinte, sábado, após uma sessão de autocrítica, chá e debates acalorados sobre os talentos organizacionais improvisados dos iranianos, ficou decidido que eles manteriam o plano original. Os produtos foram distribuídos entre os veículos fora de estrada e dois grupos rumaram por estradas secundárias desoladas e cheias de buracos no norte do Irã.
Após horas dirigindo, às vezes com a companhia de cavalos selvagens e águias voando muito acima, Pouria e seu grupo distribuiu tudo, de óleo de cozinha a carrinhos de brinquedo, a pastores e moradores desesperados, muitos dos quais somente falavam o dialeto turco local. Poucos conheciam pessoas da capital.
Eles não foram detidos por forças de segurança, sendo bem recebidos em todo lugar.
À tarde, após terem visitado quatro aldeias, uma mulher procurou Ida, 27 anos, estilista, para agradecer pela roupa de baixo recebida pela manhã.
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– Que Deus os abençoe por virem até aqui. Finalmente consegui me lavar, e as roupas novas significam muito para mim – declarou a mulher.
Pouria disse sentir orgulho de seu grupo etário, muitas vezes chamado de “geração queimada” no Irã porque tem poucas oportunidades, encarando as sanções internacionais impostas ao país e as regras cada vez mais severas impostas pelo Estado.
– Ao organizar nosso comboio de ajuda, demonstramos que sabemos cuidar de nós mesmos. Não precisamos que nos digam o que fazer.