Um livro escrito por um jovem do Norte de Santa Catarina sobre as dores das crianças que deixam seus países como refugiadas irá ajudar famílias de haitianos a se reencontrarem. O jornalista Herison Schor, de 28 anos, que mora em Garuva, recebeu a primeira edição de sua obra nesta semana e, no lugar de festas de lançamento ou planos pessoais com o lucro, irá usar os recursos da venda dos livros para pagar as passagens das crianças que ficaram no Haiti, para que possam se unir aos pais no Brasil.   

Continua depois da publicidade

> Quer receber notícias de Joinville e Norte de SC por WhatsApp? Clique aqui

“O 9° poste da XV de Novembro” é um romance infanto-juvenil que conta a história de Marília, uma professora de língua portuguesa idosa que mora em frente ao nono poste da Quinze de Novembro, rua famosa de Joinville. Em uma das aulas, ela conhece Mahaila, uma menina haitiana que havia acabado de chegar ao Brasil, e que expressava profunda melancolia no olhar.

Como forma de compreender o que acontecia com a menina, a professora a convida para um café com quitutes catarineses. E, nessas visitas, volta ao passado, revelando um dia também foi uma menina que teve que deixar sua terra para viver no Brasil, e ser uma alemã “intrusa” em meio à Segunda Guerra Mundial. 

> Em 2019, SC tinha mais de 5,7 mil imigrantes cadastrados; maioria vinha do Haiti

Continua depois da publicidade

Herison conta que a vontade de reverter o dinheiro das vendas do livro em reencontros de pais e filhos surgiu no instante em que nasceu desejo de escrever o livro.

— Um dos pais para quem pretendo entregar o dinheiro não sabe, mas foi por causa dele que tudo isso começou, quando vi uma foto sua circulando nas redes sociais. Ele estava vendendo doces brasileiros e segurando uma plaquinha escrito: “Compre uma cocada e ajude a trazer minha família para o Brasil”. Nos comentários, houve quem disse: “Eu só compro se for para você comprar a passagem pra voltar pra lá”. A partir desse momento, senti que era hora de agir”, conta.

Cartas na pandemia: jovens de Santa Catarina e crianças refugiadas relatam sonhos e aflições

No livro, Herison promove uma reflexão sobre os imigrantes europeus, como os alemães, noruegueses e suíços, que chegaram em Santa Catarina no século 19 fugindo da pobreza e da guerra em seus países, e os imigrantes haitianos que chegam atualmente, após terem sua terra natal devastada por uma guerra civil e terremotos, e da forma como cada comunidade foi recebida e é tratada pela história no Sul no Brasil.

Neto de imigrante, mas com privilégios do “descendente” de europeu

O autor é também neto de uma imigrante, sua avó, que deixou a Alemanha e inspirou algumas passagens de seu romance. Segundo Herison, a avó sempre contava detalhadamente os momentos de sua vinda ao Brasil, e da forma como foi recebida por parte da população, que viam nela, mesmo sendo uma menina, uma potencial inimiga, espiã do nazismo. 

Continua depois da publicidade

— Nesse período, minha vó e toda sua família foi proibida de falar a língua que até então era a única que sabiam.Tiveram que esconder suas fotografias e livros, pois tudo que fazia referência à Alemanha era queimado pelos soldados de Vargas. Meu bisavô, pai dela, foi preso apenas por não saber falar o português. Era um desespero profundo, pois estavam fugindo de sua terra natal para salvarem suas vidas, e aqui sofriam os efeitos por não serem “bem vindos” — conta.

> Como foi a saga dos primeiros imigrantes europeus que mudaram para Joinville

Em outro momento, já nas pesquisas do livro, o escritor lembra que, durante as entrevistas, conheceu uma menina haitiana chamada Djeminy, que havia chegado no Brasil há poucos meses, mas sabia falar o português muito bem. Para o escritor, aquele momento de conversar com ela foi como se estivesse conversando com alguém de quem já recebeu muito afeto. 

— Eu vi nela, naquela menina haitiana, os olhos da minha vó Maria. Foi algo mágico e nostálgico. Mesmo sendo tão diferentes, ela sendo haitiana e minha vó europeia, era como se eu estivesse sentado em frente à minha avó ouvindo as histórias sobre sua travessia ao Brasil; duas meninas imigrantes, em passados diferentes, com os mesmos medos e os mesmos sonhos — recorda ele, que se inspirou em Djeminy para criar a segunda protagonista da obra.

Com o livro finalizado, Herison iniciou em sua comunidade um movimento para dar mais visibilidade aos imigrantes haitianos que ainda chegam em sua cidade. Em reuniões que costuma realizar com eles, o escritor diz que aprendeu a refletir sobre os valores afetivos, da importância que é a presença, em nossas vidas, de quem amamos, daqueles que vemos todos os dias, mas não demonstramos o quão são amados. 

Continua depois da publicidade

— Um dos casais que conheci deixou o Haiti há quatro anos. No país, deixaram sua filha recém nascida com a avó. Hoje, anos depois, eles só se conhecem pelo celular, e o pai da menina conta que, mesmo em todos os dias de conversa, ela não o chama de pai, não o reconhece assim. Eu não tenho filhos, não sei mensurar essa dor, mas, por ser filho, posso imaginar algo parecido” — reflete ele.

Com as primeiras vendas do livro, o escritor destaca que já conseguirá ajudar a primeira família, repassando o dinheiro para ela na próxima semana. Mas enfatiza que ainda há mais nove crianças na fila de espera, aguardando que as vendas tenham rendimento. 

— Não quero que as pessoas me intitulem como o ‘herói branco’, compreendo que isso é recorrente. Mas tudo o que faço é com consciência de que, devido aos privilegiados de minhas origens, ‘de um sobrenome com muitas consoantes’, tudo o que conquistei foi muito fácil e rápido, e, à medida que descubro as histórias daqueles que não compartilham dos mesmos privilégios, tenho mais certeza ainda de que a minha vida é, de fato, privilegiada — analisa.

A obra foi editada pela Editora Areia, de Joinville. O livro pode ser adquirido no site da editora, em editoraareia.com.br

Continua depois da publicidade