Em mais de 25 anos de carreira, Marcelo Canellas viajou o mundo, testemunhou tragédias naturais e humanas, presenciou e narrou as realidades mais diversas, mas nunca deixou de voltar os olhos para as miudezas da vida no lugar onde cresceu. A capacidade de enxergar o que ninguém vê talvez tenha sido a fórmula do sucesso desse repórter peregrino, filho de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Canellas, que ficou conhecido nacionalmente por seu trabalho como repórter especial da TV Globo, mostra sua face de cronista com o lançamento do livro Províncias – Crônicas da Alma Interiorana, uma coletânea de textos originalmente publicados no Diário de Santa Maria e no jornal A Cidade, de Ribeirão Preto (SP).
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Nas 70 crônicas que compõem a obra, ele retrata cenas cotidianas da vida no interior, na prosa fluida e poética que o tornou famoso, e mostra que, apesar de todas as andanças mundo afora, pertence a um só lugar: Santa Maria da Boca do Monte, onde viveu a infância e a adolescência. Canellas estará nesta segunda-feira na Capital para lançamento, sessão de autógrafos e bate-papo com leitores, às 19h30min na Livrarias Catarinense do Beiramar Shopping. Antes disso, ele conversou com o DC sobre o livro, a carreira e suas raízes.
De quem partiu a ideia de reunir suas crônicas em um livro?
Escrevo crônicas semanais desde 2002 para o Diário de Santa Maria e desde 2006 para o jornal A Cidade, de Ribeirão Preto. Alguns leitores com quem fui aos poucos estabelecendo interlocução passaram a sugerir que eu reunisse minhas crônicas em livro. Mas sempre fui reticente em relação a isso por me achar muito mais repórter do que escritor. O que se espera de um livro é que tenha permanência. E eu, acostumado à efemeridade do jornalismo, tinha dúvidas se meus textos seriam perenes. Mas com o tempo fui descobrindo que a percepção do leitor em relação à crônica é totalmente distinta de sua percepção em relação à notícia. O empurrãozinho que faltava para eu tomar a decisão foi um puxão de orelha que recebi de José Bicca Larré, um grande amigo vizinho de página no Diário de Santa Maria e talentoso cronista, por eu ainda não ter um livro. Do alto de seus 84 anos, me deu uma bronca, exigindo que eu o publicasse. Foi o que fiz.
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Quais temáticas mais despertam o seu olhar de repórter e de cronista?
A crônica e a reportagem têm formas de expressão totalmente distintas. A notícia tem importância social intrínseca, é relevante por ela mesma, por conter os elementos de interesse humano. Mesmo que uma pessoa não goste do fato, ele não perde sua importância. A crônica não. Ela não tem importância nenhuma sozinha, só ganha relevância quando atinge a subjetividade do leitor, quando a pessoa se emociona, quando é tocada por uma tirada literária que a faz refletir. Entretanto, seja na reportagem ou na crônica, sempre tenho interesse pelas contradições da vida e pela condição humana. Se na primeira tenho de abordar o que considero injusto, errado ou desigual de forma objetiva, a segunda me permite um outro viés de expressão, o da subjetividade. E até mesmo um não-assunto, como a sesta de uma vaca, ou um beija-flor voando a esmo na sala da minha casa, pode ter o significado esgarçado quando o cronista consegue acender a identificação do leitor.
Você atingiu reconhecimento nacional pelo seu trabalho como repórter de TV. Qual a receptividade do público em relação às suas crônicas?
Eu desconhecia essa relação do cronista com o leitor. Meu contato sempre foi com os telespectadores, com todo aquele efeito espantoso do poder da televisão, capaz de provocar reações em grande escala. Mas a gente sabe que não é por causa do repórter, é por causa da notícia e do impacto provocado pela abrangência do meio de comunicação. Além disso, o jornalismo de televisão é, por definição, o resultado de um trabalho coletivo. Não é, portanto, uma relação pessoal que se estabelece entre o repórter e o telespectador. Com a crônica é diferente. O cronista é um solitário, e só a subjetividade do leitor pode resgatá-lo dessa solidão. Embora a escala de reações seja muito menor, ela me parece mais profunda, mais próxima. Os primeiros retornos após a publicação do livro me mostram isso muito claramente. Muitos fazem questão de me escrever para dizer que compartilham de minha alma interiorana. E como todo mundo tem, mesmo que viva em uma metrópole, alguma ancestralidade ligada ao interior do Brasil, pode ser que muita gente se identifique mesmo com as crônicas do meu livro.
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De todas as realidades sociais com as quais você se deparou durante a carreira de repórter, qual mais o surpreendeu?
A desigualdade me choca. Mas mais do que a desigualdade e a pobreza, o que me espanta é a ideia cínica de achar que isso é normal. A apatia e a incapacidade de setores mais abastados de se solidarizar com quem é frágil é, para mim, totalmente incompreensível. Por outro lado, me surpreende positivamente a criatividade do povo brasileiro, seu engenho, seu espírito inventivo, o que pode ser a chave justamente para o combate à desigualdade.
De que maneira suas viagens pelo Brasil e pelo mundo modificaram o modo como você enxerga a realidade?
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Conhecer pessoas, lugares e realidades distintas e vivenciá-las intensamente dá ao repórter ferramentas importantes para elucidar realidades que nunca aparecem prontas diante dele. E justamente porque a vida é caótica e, frequentemente, com aparência enganosa, é preciso ter cuidado para não comprar a primeira impressão. Viajar muito, ter visto muita coisa por aí, protege o repórter porque o torna mais humilde. Acabamos descobrindo que não sabemos tanto sobre a vida quanto achamos que sabemos.
As crônicas presentes no livro mostram que, apesar de ser um viajante, sua ligação com o lugar onde você cresceu ainda é muito forte.
Embora eu não tenha nascido em Santa Maria, fui para lá quando era bebê de colo, vivi toda minha infância e adolescência lá, só indo embora aos 22 anos para trabalhar em São Paulo. E apesar de já estar longe há 26 anos, minha ligação afetiva nunca se desfez. Ao contrário, parece que se aprofundou. Talvez por ser fisicamente um desenraizado, por estar cada semana em um lugar diferente, viajando como repórter especial da TV Globo, eu precise de um lugar para chamar de meu. E o meu lugar é Santa Maria da Boca do Monte.
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O LIVRO
Províncias – Crônicas da Alma Interiorana. De Marcelo Canellas. Globo Estilo. 160 págs. R$ 34,90 (preço médio)
AGENDE-SE
O quê: lançamento do livro Províncias – Crônicas da Alma Interiorana, bate-papo e sessão de autógrafos com Marcelo Canellas
Onde: Livrarias Catarinense Do Beiramar Shopping (Rua Bocaiúva, nº 2.468, piso Joaquina, Centro, Florianópolis)
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Quando: segunda-feira, às 19h30min
Quanto: gratuito