Na noite da última quarta-feira, Elizandro Brescoviski, 15 anos, tinha uma batalha marcada. Ele era um dos soldados, peça importante para a vitória do bem contra o mal. O local de enfrentamento dos "inimigos" era o palco onde a Escola do Teatro Bolshoi no Brasil apresentou seu último espetáculo do ano. Elizandro é um dos alunos da instituição que oferece formação em dança clássica em Joinville, e participou da apresentação de O Quebra-nozes, em cena com outros meninos e meninas.

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A peça, assim, como a maioria dos grandes balés clássicos de repertório, tem entre seus elementos de base a força masculina. Não apenas pelas trajetórias dos heróis – príncipes e aventureiros envolvidos em batalhas e tragédias -; nem só pela potência física exigida dos artistas que os representam; mas pela tenacidade dos garotos que enfrentam rotinas e treinos extenuantes para atingir a perfeição da dança clássica. Na maioria das vezes, sem suporte e convivendo com o preconceito pela escolha de uma atividade artística comumente associada à feminilidade.

Ainda é incomum encontrar salas de aula de balé com meninos dedicando-se ao aprendizado do balé. Nas raras exceções, um ou dois alunos dividem espaço com uma turma de garotas. Mesmo na mais antiga escola de dança clássica do Brasil, a Escola Estadual de Dança Maria Olenewa, do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, o número de homens é muito inferior ao de mulheres.

Lá, atualmente, apenas 26 rapazes dividem-se entre os nove anos das etapas do curso profissionalizante, ou seja, 10% dos alunos da instituição carioca. Outras escolas de referência na formação de bailarinos, como a do Teatro Municipal de São Paulo e do Teatro Guaíra, em Curitiba, apresentam números e proporções semelhantes: basicamente, um menino para cada dez meninas.

Em Joinville, a situação é diferente. Não há um levantamento oficial, mas dificilmente se encontrará no país concentração tão grande de garotos recebendo formação profissional em dança clássica no mesmo lugar. Elizandro é um dos 108 alunos do sexo masculino da escola, 45% do total de crianças e adolescentes que estudam atualmente na instituição ligada ao Teatro Bolshoi de Moscou.

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Com sede no Centreventos Cau Hansen, situado na região central da cidade, o lugar funciona quase como uma barreira para as dificuldades que os bailarinos do sexo masculino encontram nos outros lugares do país. Quando um menino consegue uma vaga na Escola Bolshoi, é com comemoração e orgulho que a família recebe a notícia. É o caso de Elizandro, o "soldado" do início do texto: morador de um bairro na periferia de Joinville, de onde sai todos os dias às 6h30 de ônibus para chegar ao Centro e estudar dança, piano, teatro e todas as outras disciplinas que a instituição oferece para formar o que chamam de "artistas cidadãos", o adolescente não definiu muito bem o que sonha para seu futuro. A princípio, o balé nem mesmo é o caminho principal, mas, para o pai, Evaldo, é fundamental que o garoto permaneça nas aulas de balé.

— Se sair, pode se misturar com os meninos da rua, com influências ruins, isso me preocupa. Eu quero que ele continue e tenha mais chances do que eu — afirma o pai, que trabalha coletando papelão para reciclagem.

Na comunidade em que vive, boa parte dos amigos que Elizandro fez na infância agora estão, nas palavras do garoto, "bebendo, fumando e roubando". Por isso, passar todos os períodos do contraturno escolar recebendo formação gratuita em dança é como ganhar na loteria. No ano em que ele conquistou vaga no Bolshoi Brasil, mais de 1.800 crianças haviam sido inscritas na primeira etapa do processo seletivo, mas, na audição nacional, apenas 61 foram aprovadas. Destas, 28 eram meninos.

É normal que nem todos os meninos que entram na primeira série sigam até o fim da formação, e, mesmo recebendo o diploma da Escola Bolshoi, não é garantia de que decidirão atuar como bailarinos ou que terão sucesso na área. Mas, atualmente, há 12 meninos que nasceram em Joinville e trabalham em companhias importantes do Brasil e do exterior, incluindo o Teatro Bolshoi de Moscou, o Balé Estatal de Berlim e o Miami City Ballet. É como, compara o diretor da Escola Bolshoi Brasil, Pavel Kazarian, se houvesse joinvilenses em equipes de futebol como o Real Madrid e o Barcelona.

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– Quando a criança faz o teste de seleção, só alguns gostam, de fato, de dançar e sonham ser bailarinos. Na maioria dos casos, o sonho é dos pais. Tanto a dança como esporte é um perfeito elevador social. Permite para famílias com menos condições financeiras, através do talento e do esforço, conseguir uma vida melhor, e vários joinvilenses utilizam esta chance – avalia.

Enquanto as meninas geralmente chegam à escola decididas a tornarem-se profissionais, já com ídolos em quem se espelham, a escolha dos rapazes ocorre mais perto da idade de concluir o curso e fazer vestibular, entre 15 e 18 anos. Recém-promovido a bailarino principal do Miami City Ballet, uma das mais importantes dos Estados Unidos, o joinvilense Jovani Furlan Jr lembra que foi só nesta idade que percebeu que ser bailarino poderia ser uma profissão.

O jovem, que deixou a cidade aos 17 anos por uma bolsa de estudos na escola do Miami City Ballet, para a qual foi contratado três meses depois como aprendiz, agora assumiu a posição masculina mais importante da companhia.

– Mesmo assim, quando volto para casa há pessoas que me perguntam: "o que você faz?" É difícil compreenderem que sou pago para dançar – conta.

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Mudança de papeis

Há 17 anos, quando a Escola do Teatro Bolshoi no Brasil se instalou em Joinville, a maioria dos moradores de Joinville não tinham nenhuma informação sobre a filial da instituição russa que se instalara na cidade. E, mesmo que a cidade já fosse considerada uma referência em dança por causa do festival que ocorre em julho, não era comum aos joinvilenses conviver com meninos que estudavam dança.

– Eu lembro que, quando eu era pequeno e andava com o uniforme do Bolshoi na rua, as pessoas apontavam e diziam "ó, o 'bailarininho do Bolshoi". Elas apontavam, mas era no sentido negativo da coisa. Hoje, eu vejo as crianças andando na rua e as pessoas apontando, mas é com outra entonação, de admiração, que eles falam: "olha, ele é aluno do Bolshoi" – recorda Maikon Golini, que foi aluno da primeira turma e tornou-se professor da instituição.

Os primeiros anos não foram fáceis, mas, com a formatura dos primeiros bailarinos e a contratação destes, a visão da cidade começou a ser modificada. Não que o preconceito já não exista. Quando caminha pelas ruas do bairro em que vive, Elizandro ainda escuta piadas sobre fazer aulas de dança clássica, mas a resposta do menino está na ponta da língua.

– Sempre tem alguém que fala alguma coisa, mas eu digo: "enquanto tu está na rua com teus amigos fazendo bagunça, eu estou estudando o dia inteiro. Quem está ganhando mais?" – conta ele.

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Existe uma concepção geral que relaciona a dança clássica a símbolos considerados femininos, como delicadeza e sensibilidade, mas nem sempre foi assim. Há 528 anos, quando ocorreu a primeira apresentação de dança clássica da qual há registro histórico, não era permitido às mulheres que fizessem parte de exibições públicas. Cabia aos homens executarem todos os papeis, tanto no teatro quanto na dança. A restrição durou mais de 200 anos após a origem da dança clássica, que, por isso, nasceu e se consolidou com homens como bailarinos – um deles foi o Rei Luís XIV, da França, dono de uma paixão tão grande pela dança que fundou a primeira escola do gênero, Real Academia de Ballet, em 1661.

— Quando foi permitido às mulheres fazerem parte desta escola, como corpo de baile, mesmo havendo número igual de bailarinos e bailarinas, elas eram apenas acompanhantes. Só durante o Romantismo é que o balé passou a ser feminino, com os espetáculos colocando a mulher para a frente da cena — explica o professor de história da dança Paulo Melgaço, que há mais de 25 anos oferece a matéria na Escola de Dança Maria Olenewa.

No entanto, por volta de 1870, o espaço dos homens na dança já havia sido limitado. Neste ano, quando o espetáculo Coppelia estreou na Ópera de Paris, ao contrário do que ocorria no Renascimento, foram as bailarinas que precisaram assumir os papeis masculinos, já que os patrocinadores dos espetáculos não achavam interessante haver homens no palco.

– No Brasil, é ainda mais difícil, porque a história da dança clássica só começa em 1913, com a visita de bailarinos famosos como Nijinsky ao país, fazendo nascer o sonho de escolas de formação aqui. Mas, ao mesmo tempo, criava-se o conceito de que balé é coisa de homossexuais, afastando desde o início os meninos da dança – conta Paulo, referindo-se ao bailarino que revolucionou o papel dos homens no balé, mas teve a vida íntima exposta por seu relacionamento com o diretor da companhia.

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A intolerância em relação à orientação sexual e aos papeis considerados masculinos e femininos na sociedade afastaram os homens desta arte a ponto de, mesmo um século depois da chegada do balé ao Brasil, o processo de desconstrução destes preconceitos ainda seja lento.

— Saímos perdendo porque não há investimento na formação de artistas, falta verba e, muitos meninos que chegam a escolas como o Theatro do Rio não tem suporte familiar para bancá-los. Quando uma menina decide ser bailarina, é lindo, é o sonho dos pais, mas o rapaz não tem incentivo. E precisamos tanto de mulheres quanto de homens para fazer um balé — avalia Paulo.

Atletas da dança

Quando entrou na Escola Bolshoi, Elizandro não tinha nenhuma experiência em dança. O mesmo aconteceu com o professor Maikon quando ingressou na instituição, em 2000; com o formando Carlos Boeiras, de 18 anos, e com Arthur Meurer, 11 anos, que passou na audição nacional que ocorreu no mês de outubro e se prepara para entrar na primeira série em 2018. Todos são garotos nascidos em Joinville que, por meio da pré-seleção feita nas escolas municipais da cidade, começaram a fazer balé sem nenhum sonho de tornarem-se um grande bailarino.

– Quando foram fazer o teste na minha escola, meus amigos falaram "vamos fazer, de zoeira". Só que eu passei e meus pais ficaram muito felizes, me disseram para pelo menos fazer o primeiro ano e ver se gostava. Até ali, quando falavam de balé para mim eu achava que era só colocar as mãos pra cima e ficar na ponta do pé – recorda Carlos, que deixou as aulas de futebol de salão para se dedicar ao Bolshoi.

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Para o jovem, que desde a metade do ano faz estágio como auxiliar de professor ao mesmo tempo em que conclui o último ano do curso técnico em dança clássica da Escola Bolshoi, os primeiros anos de aprendizado formam impulsionados pela vontade de se superar todos os dias. A vontade que o acompanha agora, de seguir carreira na dança e começar a fazer audições para companhias do exterior assim que conquistar o diploma, só chegou na metade da trajetória de oito anos do curso profissionalizante. É comum que, entre os meninos mais jovens – eles ingressam na primeira série com idades entre nove e 11 anos – o incentivo para entrar e permanecer na Escola Bolshoi até compreenderem o que é realmente a dança clássica, é o potencial físico que a modalidade apresenta.

– A dança clássica modifica o corpo e esse é o primeiro estímulo para os meninos. O trabalho dos homens no balé é voltado pra força e virtuosismo. Os meninos não entendem por que estão fazendo aqueles movimentos, mas, quando se olham no espelho, percebem que o corpo está se moldando – avalia Maikon.

Lugar para crescer

São as semelhanças entre a dança e o esporte que fazem brilhar os olhos de Arthur. Apesar de já ser um admirador da dança, que assiste principalmente na escola em que estuda, onde ocorrem os ensaios do programa Dançando na Escola, o que chamou atenção do menino para querer tentar uma vaga na Escola Bolshoi foi a possibilidade de aprender e praticar conceitos semelhantes aos de ginástica olímpica. Da mesma forma que este esporte, é importante que, no balé, meninos e meninas comecem cedo, o que dificilmente ocorre para eles porque não há incentivo para que façam balé na infância, e os interessados nesta arte só buscam as aulas quando tem autonomia suficiente para decidirem sozinhos.

– Existem movimentos que nascem com a gente e aqueles que você tem que transformar de automático para reflexo. Por isso, você tem que começar cedo tanto no balé quando na ginástica olímpica para saber proteger o corpo, para não se machucar – explica o preparador físico do Bolshoi, Luís Augusto da Rosa.

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Quando entram na escola de dança, com idades entre nove e 11 anos, os meninos se espelham nos alunos mais velhos e nos bailarinos da companhia semiprofissional do Bolshoi Brasil. No começo, não exatamente por causa do talento no balé, mas ao verem que estes tornaram-se musculosos. Segundo Luís Augusto, a expectativa de ficarem tão fortes quanto os veteranos vem primeiro – a noção artística vem com a maturidade.

– O bailarino é muito estético, porque o espelho está na frente dele o tempo todo. Agora, vivemos um momento em que eles tem que ter um corpo de modelo fitness com a performance de um atleta – analisa o preparador físico.

Há, atualmente, ex-alunos da Escola Bolshoi que, mesmo com diploma com um nome forte como o da instituição russa, optaram por outras profissões nas mais diferentes áreas, da arquitetura à carreira militar. Na casa do pequeno Arthur, saber que o menino dará início a uma trajetória de imersão nas artes no ano que vem não provocou ansiedade nem pressão. Por enquanto, ele espera aprender a dançar ao mesmo tempo em que imagina que, no futuro, escolherá tornar-se um médico veterinário.

– Não estamos criando nenhuma expectativa de que ele será bailarino profissional. Mas ele gosta muito de atividades, de estar ocupado, e nisso o Bolshoi se encaixará perfeitamente na vida dele – avalia a mãe, Cristiane Meurer.

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