Antes da invenção da roda, da construção das pirâmides do Egito e da domesticação da maioria dos animais, já havia pessoas caminhando pela região que hoje chamamos de Joinville. Quem eram, como viviam e como chegaram ao Sul do Brasil são questões que ainda são respondidas aos poucos, mas que dependem de um importante recurso enterrado em pelo menos 42 pontos da cidade – os vestígios agrupados em sítios arqueológicos.
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Eles fazem de Joinville um dos mais importantes lugares para a preservação da história pré-colonial brasileira, mas demandam atenção, pesquisa e recursos para garantir sua proteção. São elementos que, assim como em todo o país, não encontram eco na legislação e em políticas públicas de incentivo, e abrem brecha para que um patrimônio milenar desapareça sem ter sido totalmente compreendido.
Segundo a arqueóloga Dione da Rocha Bandeira, o município se destaca não só pelo conjunto de sítios arqueológicos, mas pela preservação de um acervo que foi salvo da destruição em um momento que o Brasil ainda aprendia a importância dos sambaquis. A cidade tem a única unidade pública brasileira construída especialmente para ser um museu arqueológico, inaugurado em 1972 já com um acervo importante. Este movimento, iniciado depois da lei federal 3.924, sancionada em 1961, garantiu outra singularidade a Joinville – a presença de sambaquis preservados em meio à área urbana.
Trajetória de salvamento começou com amador
Foi o imigrante alemão Guilherme Tiburtius que, nos anos 1930, começou a escavar a região entre a Baía de Guaratuba, no Paraná, e a Baía da Babitonga, em Santa Catarina. Ele era um pesquisador amador, mas garantiu que Joinville conservasse ossadas e artefatos que hoje são procurados por pesquisadores de todo o país.
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– Guilherme acompanhou enquanto os sambaquis eram destruídos para produção de cal e utilizados para pavimentação. Ele colheu muito material e sua coleção tinha pelo menos 15 mil peças quando foram vendidas para a Prefeitura de Joinville, em 1963. Por isso, temos um acervo significativo na cidade – explica Dione.
Na época, o poder público investiu 20% do orçamento anual do município para adquirir as peças da Coleção Tiburtius e, nos anos seguintes, manteve o alto investimento ao comprar um terreno da região central e lá construir um museu de arqueologia, inaugurado em 1972. Para Dione, não há dúvidas de que ter uma equipe de profissionais atuando ininterruptamente na pesquisa e inspeção dos sítios arqueológicos da cidade foi primordial para que a expansão urbana não destruísse as áreas de sambaquis. Mesmo que o Museu Arqueológico de Sambaqui de Joinville só tenha recebido, por lei, a responsabilidade sobre o patrimônio arqueológico – oficializada na Lei Orgânica do município em 1990 –, este trabalho é executado desde sua criação.
– Muitos museus se preocupam apenas com os acervos, com questões internas, e em Joinville há este cuidado com o que considero também parte do acervo, mas que está no local original dele. Temos uma lei que diz que o museu é responsável pela salvaguarda destes sítios, o que não é comum, porque este é um patrimônio da União e o responsável é o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Ainda temos muitos problemas, mas, se fizer um comparativo com outros lugares, o cuidado que temos é muito relevante – avalia Dione.
Preservação para milênios de sobrevivência
Joinville faz parte de um grupo de municípios do Litoral Norte de Santa Catarina que, juntos, somam cerca de 170 sítios arqueológicos registrados. Eles estão em volta da Baía da Babitonga que, com sua massa de água costeira que deságua no mar, preserva recursos naturais que podiam proporcionar elementos para a sobrevivência humana por muito tempo.
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Estima-se que as sociedades de caçadores-coletores, como são chamados os seres humanos desde o surgimento da espécie até cerca de 7 mil anos atrás, passaram pelo local, mas as pesquisas mostram, principalmente, vestígios de sociedades que ocuparam a região há 4 mil anos.
O mais antigo registro da passagem de seres humanos por Joinville data de 8.000 Antes do Presente, ou seja, há mais de 6 mil anos. São desta época os artefatos encontrados durante uma escavação no aterro sanitário de Joinville, em 2010, durante a inspeção do terreno para ampliação da área de um empreendimento.
Onde havia pontas de flechas e polidores de machadinhas que foram testadas em laboratórios nos Estados Unidos para confirmar a idade e levaram os arqueólogos a acreditar que uma pequena comunidade viveu no local antes mesmo da chegada dos povos sambaquianos.
História da humanidade na frente de casa
De tempos em tempos, o neto de Mário Celso Moura, 62 anos, pergunta ao avô o que significa a formação rochosa que fica em frente à casa que a família comprou há oito anos, no bairro Espinheiros.
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– São os antepassados do vô – explica Mário.
Diante da incredulidade do menino que, por isso, sempre refaz o questionamento novamente depois de um tempo. Pesquisas realizadas naquele sambaqui, chamado de Espinheiros II, levaram a descobertas de vestígios que mostram que o local foi ocupado há 3 mil anos. Agora, é motivo de orgulho e dor de cabeça para moradores como Mário, que atua como uma espécie de protetor do local, monitorando o vandalismo e o despejo de lixo e entulhos.
O mesmo problema é visto nos outros nove sambaquis localizados na área urbana de Joinville, que se confundem com terrenos abandonados perdidos em meio à vegetação. Apenas o Sambaqui Morro do Ouro, no Guanabara, recebeu a infraestrutura planejada para todos, quando foi incorporado às obras do Parque da Cidade. Ele possui um deque elevado de madeira que funciona como uma espécie de mirante, e placas que comunicam a existência dos vestígios arqueológicos no local, bem ao lado da Ponte do Trabalhador.
Desaparecimento gradativo com o tempo
Um dos mais importantes exemplares de sítios arqueológicos de Joinville está desaparecendo pouco a pouco devido o impacto da natureza na região do Cubatão. Ele começou a ser estudado no fim da década passada e levaram a descobertas de ossos de quase 3 mil anos, que colaboraram na argumentação para mostrar que, ao contrário do que era imaginado, a expectativa de vida do sambaquiano podia ultrapassar os 40 anos, já que foram encontradas arcadas dentárias de pessoas de até 70 anos de idade.
As pesquisas pararam por entraves nos editais de financiamento e, agora, pisar no local é considerado irregular pela Defesa Civil.
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Localizado sobre o mangue, o sítio sofre a influência das marés e das embarcações que transitam pelo rio Cubatão, o que provoca um acelerado processo de erosão. Ela causa o desmoronamento dos blocos, levando à perda dos vestígios de uma população que usou aquela região.