No século passado, mestre Pastinha já alertara: “capoeira é pra homem, menino e mulher”. Mas tão compassado quanto o batuque do berimbau, que lentamente indica a abertura de uma roda de capoeira, é o reconhecimento da presença feminina na história desta arte. Com o passar dos anos, a narrativa pouco mudou, mas há as que gingam em ritmo mais acelerado para que a cena seja cada vez mais ocupada por mulheres. Este é o caso de Karllinha Reis, 46 anos, que se tornou a primeira mestra de capoeira de Joinville e a primeira negra a ser reconhecida com essa graduação em Santa Catarina.
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Com 32 anos de experiência na prática, Karllinha considera o feito histórico como vitorioso, mas acredita que ainda há muito caminho a ser trilhado na luta contra o machismo, que impede mulheres de conquistarem o espaço que têm direito.
Como se não bastasse a falta de visibilidade em registros históricos, as mulheres na capoeira ainda são cobradas pelo corpo, para se enquadrarem em um padrão de beleza exigido pela sociedade, e por condicionamento físico: “As pessoas são muito apegadas a padrões estéticos”, define.
No atual cenário catarinense, Karllinha se soma às mestras Rosa, de Florianópolis, e Fru, de Blumenau, e reconhece que ainda há poucas mulheres com esta formação no país, mas comenta que existem grupos que, assim como ela, buscam a inclusão de gêneros em seus trabalhos.
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— Eu levei 32 anos para me formar mestra. Mas se fizer uma pesquisa e perguntar para os mestres e mestras, é capaz de encontrar um mestre homem que pegou a graduação em menos tempo. Isso é puro machismo — relata a mestra.
Faixa vermelha
Natural de Brasília, Karllinha chegou a Joinville nos anos 2000 e, desde então, dá aulas de capoeira. Em sua jornada, viveu momentos em que presenciou sua sala cheia, com poucos alunos e até vazia. Mas o fato é que nunca desistiu de repassar seus aprendizados e buscar reconhecimento da arte que pratica.
Durante o fim de semana, ela recebeu a faixa vermelha da capoeira, carregada apenas por graduados a mestres. Para ela, o ato em si é mera formalidade, já que anos antes já era tratada como “mestra Karllinha” pela comunidade.
Na cerimônia, fez questão que a maioria do público a ocupar as cadeiras fosse de mulheres, destoando da realidade vivida na cidade. Com a nomeação, a mestra espera que novos caminhos sejam abertos e que mais mulheres se sintam incentivadas a ocuparem esses espaços, principalmente, as negras.
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— Num primeiro momento eu lamentei [por ser a primeira negra do estado]. Sei que isso aconteceu porque muitas desistiram no meio do caminho. Não porque são fracas, mas pela forma como somos tratadas dentro da capoeira. Eu persisti muito, mas porque sou teimosa. Desejo que mais mulheres sejam teimosas, não deixem que o preconceito as impeça de se manter na capoeira. E espero que mais mulheres negras procurem a capoeira, foi nosso povo que trouxe ela pra cá, e vamos nos manter nela — reflete.
Ginga no Mané Garrincha
Filha de pai militar e mãe evangélica, o primeiro contato de Karllinha com a capoeira veio aos 13 anos, quando, pelas largas quadras do bairro Asa Norte, assistia à molecada que brotava para gingar em frente às escolas.
Em 1988, passou a fazer curso gratuito com os adolescentes considerados “problema” que tiveram a oportunidade de darem suas aulas de capoeira dentro do colégio. À época, conta Karllinha, a diretora já via a prática como instrumento de educação.
— Ela autorizou, mas sob ameaça de cancelamento se esses adolescentes se envolvessem em confusão — lembra.
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De lá, conseguiu um emprego e, tão logo pôde pagar, se matriculou em uma aula de capoeira que era ministrada em salinhas instaladas abaixo das arquibancadas do Estádio Mané Garrincha, em Brasília.
Com o passar dos anos, cruzou com vários nomes fortes e importantes da capoeira, inclusive, fez curso com Mestre Nenel, filho de Bimba. Do gingado da Angola ao batuque da Regional, Karllinha se diz praticante das duas linhas de capoeira.
Em suas aulas, inclusive, faz questão de apresentar os ensinamentos de ambas e, apesar de não se colocar como uma “capoeirista tradicional”, defende a ideia de que os movimentos e todos os encantamentos que envolvem uma roda de capoeira precisam ser preservados.
“Não tem nada que inventar moda, não foi praticado de um jeito por anos sem motivo”.
— É importante que as coisas evoluam para melhorar os movimentos, mas não se percam as tradições, o respeito aos velhos mestres, à instrumentação e formação da bateria. O respeito a quem está coordenando a roda — determina.
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Por outro lado, não vê problema em gingar os estilos diferentes proporcionados pela capoeira.
— Eu sou capoeira. E quem é, joga a capoeira, independente do estilo. O ritmo que o berimbau tocar, eu vou jogar, vou “capoeirar. Mas é preciso saber os movimentos, não é entrar na roda e jogar a perna pra cima e pronto e acabou – define.
Preconceito de outros tempos
Com mais de 500 anos de história, não é de hoje que os praticantes de capoeira precisam lidar com preconceitos. A arte foi trazida da África ao Brasil e mantida pelos escravos como forma de preservar as tradições de sua terra.
A capoeira só foi mantida, no entanto, porque os senhores de engenho a consideravam uma dança e permitiam que os negros a praticassem nas senzalas e canaviais.
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— Os escravos perceberam que poderiam transformar esta dança em luta e, que, desta forma disfarçada, poderiam treinar os golpes da capoeira. Foi assim que surgiu e é por isso que é considerada, pela maioria dos pesquisadores e historiadores, como uma luta disfarçada em dança afro-brasileira — explica a mestra Karllinha.
No Brasil, há duas fortes vertentes que são praticadas pelos grupos: a capoeira de Angola, que ficou conhecida por Mestre Pastinha, e a capoeira regional, que tem Mestre Bimba como personagem principal.
Ambos, inclusive, travaram batalhas e tiveram de se reinventar para que a arte fosse preservada e pudesse ter o reconhecimento cultural dos dias atuais, já que, logo após o fim da escravidão, a atividade se tornou ilegal e quem praticasse – um simples movimento que fosse -, poderia ser preso por até seis meses.
Vista como arte para alguns e luta para outros, o fato é que a capoeira ainda carrega o estigma de marginalidade que lhe foi atribuído em tempos remotos, e preservar os ensinamentos e ancestralidade que esta prática carrega representa resistência dos amantes da capoeira. Mestra Karllinha aponta que muita coisa já mudou para melhor, mas ainda tem muito que avançar.
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— De vez em quando ainda tem umas almas sebosas — brinca.
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