Vergonha das cicatrizes é algo que a jovem Angela Coan aprendeu a esquecer. Nesta segunda-feira, ela completa 15 anos. Angela sobreviveu a uma hidronefrose bilateral (má-formação dos rins), anomalia rara, especialmente em meninas.

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Quando ela ainda era um feto, foi operada dentro do útero da mãe e fez história na medicina como o primeiro caso de cirurgia intrauterina em Joinville e em Santa Catarina. Hoje ela estuda, trabalha e tem a terrível tarefa de evitar comer pizza, mas pode curtir à vontade o grupo musical One Direction.

Angela passou por três cirurgias até completar um ano. Uma intrauterina, outra neonatal e a terceira no período de lactação. Dois médicos cuidaram da má-formação dos rins, que impedia a saída da urina, quando Angela ainda era um feto.

O ginecologista obstetra que atua na área de medicina fetal Rafaeli Sfendrych fez o pré-natal da mãe de Angela, Janete Corrêa Coan, e descobriu, com o exame de ultrassom, que os dois rins estavam obstruídos e havia grande acúmulo de líquido.

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Rafaeli convidou o cirurgião obstétrico Joaquim Leite Neto e, juntos, fizeram a primeira cirurgia, com o feto dentro do útero, sem cortes, com apenas uma incisão.

-Se eu tinha pecados, paguei naquela hora-, brincou Janete, que tomou apenas anestesia local, porque o relaxamento muscular associado à provocação do organismo poderia resultar em um parto prematuro.

A dor de Janete e as mãos dos médicos permitiram que os pais se emocionassem com algo que para qualquer bebê saudável seria normal: urinar. Oldair Coan se ajoelhou na cama, descrente das suspeitas da esposa, e pediu:

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-Filha, se você está fazendo mesmo, mostra para o pai. Um jato espantou a dúvida.

Angela deu adeus aos cateteres, um implantado no rim esquerdo ainda dentro do útero e outro colocado no direito, quando recém-nascida.

Mesmo com o tratamento, um dos rins parou de funcionar. Outra cirurgia foi feita para a retirada do órgão. A moça vive muito bem sem um rim. Toma apenas um comprimido diariamente para manter a pressão mais baixa, em 10 por 8, e não sobrecarregar o organismo. Mas, às vezes, ela esquece de se medicar.

-O bilhetinho está lá na porta da geladeira-, lembrou a mãe.

-A gente acorda, olha o celular, responde a todas as mensagens e acaba esquecendo-, desculpa-se Angela.

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O celular, ela comprou com o salário que recebe por trabalhar em um mercado como menor aprendiz. Ela estuda de manhã e vai ao mercado à tarde. Também são rotineiras as visitas anuais ao médico e a dieta com pouquíssimo sal. Alguns alimentos precisam ser evitados, como pizza.

-É o que eu mais gosto de comer e não posso-, lamentou.

Outro que arranca além de suspiros, gritos e defesas acaloradas é Liam Payne, um dos vocalistas do grupo One Direction. A identidade com o ídolo vai além da música. Através de fãs do grupo, Angela soube que Liam também tinha problema de malformação dos rins. Assunto que Angela tentava evitar.

Ela chegou a tirar da parede todas as notícias escritas sobre o caso dela, que foram colocadas em quadros pelos pais. O desejo era de que ninguém que visitasse a casa soubesse do problema que superou.

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-Agora não tenho mais vergonha- garantiu Ângela.

Os pais de Angela preparam uma festa simples, mas maior que todas as anteriores, para comemorar o aniversário de Angela. Ela completa 15 anos. Um dia antes, sua irmã Maria Ester também faz aniversário. As duas são companheiras do pai nos jogos do JEC.

-Angela uma adolescente normal-, comentou o pai.

-Rebelde…-, adjetivou a mãe.

-Eu não sou rebelde!

Da cirurgia à recuperação plena

Os canais que ligam os dois rins de Angela à bexiga tinham obstruções, como se fossem canudos mordidos. Uma ultrassonografia feita pelo doutor Rafaeli na 27ª semana de gestação mostrou as alterações nos órgãos. A urina ficava represada, sem saída para a bexiga e para a bolsa. Sem urina, o líquido amniótico começou a secar.

Esse líquido que o feto respira contribui para a formação dos pulmões, ocupando as cavidades que serão substituídas pelo ar no nascimento. Sem líquido, os espaços ficam grudados. Sem cavidades, não há a possibilidade de o oxigênio entrar.

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-Inviável-, comentou o cirurgião obstétrico Joaquim Leite Neto, caso a cirurgia intrauterina não fosse feita no tempo e nas condições mais favoráveis.

Uma semana se passou da descoberta até a cirurgia. A família não tinha condições de ir para São Paulo, então o procedimento precisou ser realizado em Joinville. Por meio de uma punção – penetração de uma espécie de seringa – foi coletada urina dos dois rins, permitindo avaliação de qual deles estaria em melhor condição para receber o cateter.

O procedimento é muito invasivo, de acordo com doutor Joaquim, mas representava a única possibilidade de sobrevivência. O risco de falha da cirurgia intrauterina pode chegar a 45%.

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-Você tem dois pacientes e um útero nervoso-, resume Joaquim, tentando explicar a dificuldade de atravessar a barriga, o útero e o feto.

Era a primeira vez que os dois médicos operavam juntos. Enquanto Rafaeli manuseava o ultrassom, Joaquim introduzia a guia do cateter, o que garantiu o mínimo de invasão possível no ambiente do útero. Tudo foi milimetricamente calculado. O tamanho do cateter deveria ser o suficiente para penetrar o rim sem ultrapassar a bolsa e o útero.

Logo após o nascimento, por cesárea, o doutor Joaquim realizou outra cirurgia para colocação de cateter, desta vez no rim direito. Depois, houve a necessidade de um terceiro procedimento para retirada do rim acometido e melhora do canal que conduz a urina para a bexiga no rim bom. A recuperação e o crescimento saudável de Angela trouxeram confiança para os médicos de Joinville.

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Diagnóstico e tratamento

O diagnóstico do tipo de má-formação que Angela teve nos rins é feito durante o pré-natal, por isso o doutor Rafaeli recomenda o acompanhamento da gestação. A cirurgia intrauterina foi oferecida pelo Hospital Dona Helena. A família pagou por alguns materiais e medicamentos.

A cada 500 fetos, de acordo com o Dr. Joaquim, um desenvolverá má-formação no rim. O tratamento pode ser encontrado na rede pública. A Maternidade Darcy Vargas pode tratar casos como o de Angela.