Em meio a tábuas de madeira, na primeira década do século 21, um caderno repousava, à espera de seu destino: ser jogado nos fornos de uma olaria do bairro Itinga. Não que aquela fosse sua sina: era por acaso que ele havia ido parar ali, com o marrom da capa dura confundindo-se com o da madeira descartada no terreno da família Dordet.
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Havia resistido ao tempo por pelo menos 60 anos e cruzado Joinville para chegar perto do fogo, até ser resgatado pelo jovem Mikhail Dordet: ele estranhou a imagem em meio ao lixo de construção e parou o trabalho para investigar aquele objeto que nada tinha a ver com o que a olaria da família costumava receber. Entregou-o para a mãe, Neuza Cristofolini Dordet, e voltou ao serviço.
Uma década depois, já com as redes sociais como aliadas, Neuza decidiu que era hora de decifrar o mistério iniciado naquele dia. Ela havia se afeiçoado ao caderninho, que traz em suas páginas recados escritos em português e alemão, com datas entre 1948 e 1950, dedicados a uma criança chamada Waltrudes. Nas assinaturas, caligrafias infantis de meninas dividem espaço com uma escrita cheia de referências góticas e sobrenomes conhecidos dos imigrantes europeus de Joinville: Fuchs, Dietrich, Schneider, Guintert.
– Eu gostava de ler os recados e tentar imaginar quem eram aquelas pessoas, como era a vida deles – conta Neuza, que se separou do caderno por alguns anos após emprestá-lo a uma amiga que lhe prometeu a tradução dos textos em alemão.
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Novamente de posse da antiguidade, Neuza publicou fotos da capa e das páginas no Grupo Joinville de Ontem, no Facebook, em busca de pistas sobre a dona do caderno. Além de aguçar a curiosidade dos participantes (o grupo conta com mais de 28 mil seguidores), que tentaram ajudar a encontrar Waltrudes, seus descendentes ou alguém que assinou o álbum de recados; também mexeu com a nostalgia: os álbuns de recado foram uma tradição durante décadas, e quem foi criança até os anos 1980 chegou a possuir ou a assinar um deles.
– Hoje, os jovens não precisam disso, mandam recados o tempo todo pela internet, pelo celular. Se tratam de forma diferente daquele tempo, dizem “miga, sua louca” para as outras – diverte-se Neuza.
Ela refere-se ao jeito carinhoso com que as colegas dos anos de 1940 dedicam seus recados a Waltrudes, chamando-a de boa e querida, aconselhando que continue “meiga, dócil e obediente” e identificando-se como “sua amiguinha”. Entre os adultos, a maioria dos recados estão em alemão, inclusive o do pai, Waldemar Ernst Hardt, que o começa dizendo que, “um dia, teremos que nos separar, mas, enquanto isso, minha única criança, escrevo para termos a lembrança de estarmos juntos”.
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O longo caminho para casa
As primeiras dicas para identificar quem foi Waltrudes, a menina dona do caderno nos anos 1940, vieram no Grupo Joinville de Ontem. A assinatura da irmã Elisabeth Gomes, que lecionava no Colégio São Vicente de Paulo, atual Colégio dos Santos Anjos, foi essencial para isso: ex-alunas identificaram o nome e apostaram que Waltrudes e suas colegas estudaram na instituição católica, uma das mais antigas da cidade. Outros nomes de meninas foram reconhecidos, mas ninguém conseguia uma resposta para a pergunta de Neuza: quem era Waltrudes e onde ela estava agora?
Para ajudar, “A Notícia” pediu a colaboração da melhor fonte de memórias da cidade, Jutta Hagemann. Além de conhecer nomes, sobrenomes e relações da Joinville da primeira metade do século passado, a apaixonada por história tem conhecimento em alemão – algo com que nem Neuza nem a equipe do “AN” contava – e pôde identificar que alguns recados neste idioma eram de familiares, como avó e tio, que assinavam como Tönnemann.
– Eu lembro que houve uma Tönnemann que casou com um Hardt – afirmou dona Jutta, reduzindo a busca a menos famílias da cidade.
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A família Tönnemann não era desconhecida da reportagem. Mais de uma vez, ela foi entrevistada, por tratar-se de uma das famílias de imigrantes mais antigas da cidade. Ao telefone, Mônica Bachtold sinaliza: o patriarca, Siegfried von Tönnemann, já morreu, mas ela acredita que a Tönnemann procurada pela reportagem havia adotado o sobrenome Hardt e fazia parte da família dona de uma floricultura da cidade com o mesmo nome.
Foi assim que o caderno, que um dia era apenas um álbum de recados de criança, chegou com aura de mistério a Kurt Kampmann. Ele é o filho mais velho de Waltrudes – nascida Hardt, de mãe Tönnemann – e herdeiro das atividades na floricultura dos avós.
– Eu nunca havia visto este caderno – conta ele, após reconhecer a assinatura do avô materno. – Como ele pôde ir parar em uma olaria?
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Relíquia familiar
Waltrudes nasceu em 2 de fevereiro de 1939, em Joinville, filha única de Waldemar Ernst Hardt e Ruth von Tönnemann. Passou a infância na rua Quinze de Novembro, no Centro, onde o pai tinha uma espécie de açougue, a salsicharia, antes de ir morar no bairro Atiradores, nas terras herdadas da família Tönnemann.
Na época, mesmo quando Kurt já era criança, nos anos de 1960, o local era tão afastado “da cidade”, que nem o correio chegava: o carteiro deixava as cartas em um hotel na frente do Cemitério Municipal. Ali, ela ajudava a família nas vendas de plantas, flores e animais, como marrecos, mesmo depois de casar com Herberto Kampmann, aos 17 anos.
– Acredito que este caderno nem chegou a vir para cá [na casa da família transformada em floricultura]. Ele deve ter ficado na casa da rua Quinze e por isso foi parar tão longe, misturado com as madeiras – avalia Kurt, que agora guardará a relíquia familiar.
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Da mãe, ele conta que era uma moça carinhosa, que o levava na bicicleta quando ia fazer entrega de leite, ricota e até de marrecos nas casas de Joinville. Waltrudes morreu jovem, aos 55 anos, depois de passar pelo diagnóstico de diabetes e por um derrame.
Ao contrário de todas as outras pessoas, que deixam suas lembranças apenas para os entes queridos, as de Waltrudes chegaram 15 anos depois de sua morte às mãos de uma desconhecida, que tratou de dividi-la com outros joinvilenses e fazer com que eles realizassem o desejo de uma das amigas que assinaram o caderno: que ele, futuramente, seria uma agradável lembrança da mocidade.