O ônibus que deixou o Brasil às portas do rebaixamento à Segundona estacionou em frente ao Estádio Bento Freitas à 1h4min de domingo, 15 de março, minutos antes da chuva. Para quem fora a Bento Gonçalves enfrentar o Esportivo, porém, a tormenta recém havia acabado.

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Afinal, nada aflige mais do que viajar à noite depois do acidente que matou o goleador Claudio Milar, o zagueiro Régis e o preparador de goleiros Giovani Guimarães e feriu sete jogadores, comissão técnica e funcionários.

A tragédia de 15 de janeiro, quando o ônibus do Brasil tombou em Canguçu, provocou um trauma. Algo que o silêncio no ônibus-leito encarregado de levar o time a Bento denunciava. Ou por três palavras do supervisor Vinícius Garcia, um dos sobreviventes:

– Os caras tremem.

A viagem começa às 13h32min de uma sexta-feira 13. O ônibus recebe bagagens enquanto jogadores conversam na calçada da sede do clube. No vestiário, o roupeiro José Antônio Magalhães, o Esquerda, anuncia o que todos já sabem: ele e suas duas tatuagens do Brasil, no braço esquerdo, ficarão em Pelotas. Mesmo que o roteiro exclua o local do acidente.

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Menos traumatizado é o massagista Luiz Carlos Dias, 59 anos. Dado como morto em 15 de janeiro, resistiu a lesões nas costelas e no peito, além de uma parada cardíaca. Mas carrega pesadelos como sequelas. Evita dormir no ônibus. Prefere um lugar ao lado do motorista Claudiomiro Araújo, 43 anos de idade, 25 de estrada e giros por Chile e Peru no currículo.

O ônibus mal arranca, e Luiz Carlos começa a servir café. Instalado na primeira fila, ao lado do presidente Helder Lopes, o técnico Abel Ribeiro comenta sobre a ausência do chimarrão. Está longe dos jogadores, acomodados da metade para trás do veículo.

Lá, o silêncio só é cortado por bate-papos esparsos e pelo volante Edenilso. Às 13h44min, ele deflagra operação para rodar o DVD Missão Babilônia. Leva três minutos até ligar as tevês e outros tantos com a batalha das legendas.

– Português! – berram os colegas.

Edenilso acerta. Outro grito ecoa:

– Volume!

Os atletas estão atirados nos bancos. Ignoram os cintos de segurança e colocam as pernas para cima. De uniforme preto, ouvem música com fones, usam laptops, assistem ao filme ou tentam dormir. Ainda assim, vigiam a estrada. O zagueiro Rodrigo reagiu a uma ultrapassagem:

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– Ô, meu motora, não faz isso!

Ambiente silencioso impera, mas jogadores dizem que isso é normal

Sentados no fundo, Rodrigo e o lateral Carlão são os únicos a conversar. A situação muda de figura com o lanche das 16h, servido por Luiz Carlos. Em seguida, o ônibus para por 20 minutos na fiscalização do posto policial de Eldorado do Sul. Tempo suficiente para o presidente Lopes, fora do veículo, lembrar do acidente em conversa com a comissão técnica.

A viagem segue e, com ela, o ambiente silencioso – situação normal, diria depois o volante Cleber Gaúcho. Fora do jogo, Fred e Rafael Gaúcho descem na Região Metropolitana. Despedem-se discretamente. Na altura de Carlos Barbosa, Cleber vai até a frente e conversa escorado em um banco com o técnico Abel. Às 19h8min, na chegada ao hotel, o presidente minimiza a duração da viagem. Os jogadores, porém, reclamam das chacoalhadas do ônibus.

O grupo janta, sobe aos quartos, desce para um lanche e só reaparece no café da manhã de um sábado com sol e temperatura amena. Sai do hotel às 13h38min direto para a Montanha dos Vinhedos, após o almoço. No restaurante, o presidente admite o medo de estrada, agora menor do que na primeira viagem no Gauchão:

– A cada freada, a gente sentia.

O Brasil chega ao estádio embalado pela música dance do DJ-volante Edenilso, que seria recepcionado por familiares de Carlos Barbosa. Luiz Carlos e companhia carregam três boxes metálicos rumo ao vestiário, e os jogadores economizam palavras instalados em bancos de madeira junto às paredes brancas. Abel bebe água antes de montar um quadro de instruções com um campo verde e botões amarelos e vermelhos. Instala-o sobre uma cadeira de plástico. Começa a preleção às 14h16min.

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O técnico fala sobre o “jogo da vida”, por nove minutos. Vem a hora de se fardar, aquecer e cuidar de detalhes especiais – caso do goleiro Luciano. Religioso, ele arma um pequeno altar de madeira em mesa junto à porta que liga o vestiário ao túnel. Com imagens de Nossa Senhora Aparecida, Santa Rita de Cássia, Jesus e São Jorge, acende três velas. Alerta: não podem apagar. Mas o vento encanado o contraria. Luciano improvisa um esparadrapo como tranca na porta.

Na mobilização final, o goleiro lembra que todos estão sofrendo por não ter vencido no Gauchão. O atacante Gabriel exclama, chega de ser saco de pancada. O lateral Carlão fala em fundo do poço. Abraçados em círculo, todos rezam aos gritos e rumam ao campo. Luciano, galho de arruda na orelha, reforça:

– Não deixem as velas apagarem.

Sob assistência de 60 xavantes, o time chega ao intervalo no 0 a 0. Descansa em silêncio. Às 17h40min, retorna vigiado por duas metades das velas de Luciano – a terceira fora consumida.

O Brasil acerta o travessão três vezes. Precisa dos três pontos. Abel, porém, manda Giovanni desabar para sair substituído na maca. Quer ganhar tempo. Não quando Carlos Simon vê pênalti de Alex Martins. Todos se desesperam. O Esportivo marca, logo amplia, Edenilso desconta e mal comemora. O Brasil, no entanto, sitia Simon na saída. Reclama do pênalti. Mais uma derrota. O rebaixamento é iminente.

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Na janta em restaurante, músico dedicou “Tente Outra Vez” à equipe

No vestiário, um toco de vela resiste aceso como as queixas contra Simon e o desânimo. Alex Martins e Rodrigo parecem arrasados. O banho é silencioso. Abel se isola. São 18h41min quando o Brasil parte para a temida viagem noturna.

Com luz acesa, passa uma hora até a janta em um buffet, em Portão. Sessenta minutos de poucas conversas, fora as de Adriano Sella com Mutt e Lyndson – Sella mostra fotos de sua passagem pelos EUA e Canadá. Alex Martins deita arrasado em um banco. O restante se cala. No jantar com música ao vivo – alguém dedicou ao Brasil Tente Outra Vez, de Raul Seixas -, nada de risadas. Nem atenção à canção. Carlão, cabeça baixa em frente ao prato, lamenta a derrota.

Às 21h10min, o ônibus parte. Sentado ao lado do motorista, Luiz Carlos recorda de detalhes do acidente e aponta para as costelas machucadas antes de oferecer café. Garante que os sobreviventes de janeiro não dormem. No andar de cima, o meia Magno assume o DVD – Edenilso ficou na Serra. Quem não trouxe fones de ouvido só ouve o filme Rede de Mentiras, mais ainda quando a luz apaga, às 21h30min, em frente do Parque de Exposições da Expointer, em Esteio.

A exibição segue até as 23h20min. A esta altura, Jorge Mutt e Cleber já ficaram pelo caminho. O volante gasta parte do tempo exibindo fotos antigas no laptop a companheiros e, perto de seu destino, Camaquã, lembra que teria de levar o DVD embora. Acaba demovido da ideia pelos colegas. Sai antes do desfecho do filme.

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As tevês logo se desligam. Aí, sim, o barulho das rodas realmente impera. A turma da frente ensaia um cochilo, mas Carlão, Alex Martins, Magno, Picon e Rodrigo seguem alertas. Vez por outra, conversam. Mas não comentam a vista no lado esquerdo do veículo: relâmpagos da tempestade que parece se avizinhar.

Assim é até Pelotas, sem sobressaltos na estrada. Mas segue a tradicional vigilância nas ultrapassagens. O único incidente é à discussão de um jogador ao celular. Aos gritos, acorda quem dorme e, se provoca constrangimentos, não escuta manifestações.

Na chegada à cidade, o grupo se dispersa. Cara de sono, Abel desce no Centro, com Magno e Luciano. À 1h4min, na parada final, há poucas e rápidas despedidas. Todos estão cansados pela maratona. Resta apenas o vento típico da propalada tormenta que, no fim, caiu como garoa.