Foi por causa da namorada surda de um tio que Jessyka Maia de Souza começou a se interessar em aprender Língua Brasileira de Sinais (Libras). 

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– Ele trouxe a menina e a minha vó começou a falar assim: “Ele não quer nada com a vida, ele não quer trabalhar. Se você ficar aqui, tu vais ficar estagnada que nem ele”. E a moça olhava pra ela, sorria e baixava a cabeça. Ela falou: “Ah, eu não acredito, ainda tá debochando de mim’” Aí ele falou: “Não, ela é surda” – conta a intérprete.

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– Todo mundo ficou falando: “Caramba, mas por que você não avisou que ela era surda, porque ninguém tinha ficado falando com ela o tempo todo, igual a gente tá falando, né?”. E aí ninguém sabia libras, a gente nem sabia o que era libras. Ela se comunicava por papel – lembra Jessyca.

Através da escrita, Jessyka pediu à namorada do tio que ensinassem alguns sinais. O interesse fez com que ela decidisse estudar letras-libras. E foi a partir de um game que jogou com um professor na universidade, em 2017, que ela percebeu o quanto a deficiência auditiva pode interferir na experiência do jogador. 

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– Eu estava jogando com um professor meu que é surdo e a gente começou a jogar. Aí, comecei a perceber situações que ele não reagia a interações com som – explica Jessyka. 

Os dois jogavam o famoso jogo de batalhas “League of Legends”. Em um determinado momento, um dos personagens usa a habilidade mais forte e vem correndo dando um grito de guerra. 

– Eu notava que ele, o meu professor, só reagia quando ele já estava vendo o Sion (personagem do jogo). Eu falava assim: “Nossa, mas se ele já tá gritando desde antes, por que que você não reagiu?”. O professor respondeu que sabia que havia som – conta ela.

Aos 26 anos, Jessyka, que mora em Florianópolis, conseguiu juntar o conhecimento que adquiriu estudando letras-libras na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) com a paixão que vem desde a infância: os jogos eletrônicos. Conhecida na internet pelo nome “Suuhgetsu”, ela decidiu atuar como intérprete em campeonatos de esportes eletrônicos (eSports). Os jogadores com alguma deficiência auditiva dizem que o trabalho feito por ela os ajuda a acompanhar melhor as partidas, além de sentirem-se mais incluídos. 

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Com isso, surgiu o interesse acadêmico pelo assunto, já que Jessyka procurava um tema para o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). 

– Posso pesquisar dentro de jogos, com libras. É uma área que não tem. E é uma área que eu tenho afinidade – completa. 

Nas pesquisas, Jessyka encontrou em uma rede social um grupo de jogadores surdos. Eles estavam participando de um campeonato de “League of Legends” e ela se ofereceu para ser intérprete. Isso foi em 2017. Desde então, foram outros sete campeonatos, o mais recente deles no mês passado, e outros cinco jogos diferentes. 

– É muito bom ver que os campeonatos e as empresas estão se preocupando com isso. Eles estão se preocupando com o público surdo. E não só o público surdo, porque quando você traz um tipo de recurso de acessibilidade, você também mostra para a comunidade que existem pessoas com deficiência dentro do cenário e que elas precisam de recursos acessíveis e que elas também têm o direito de jogar – pontua ela. 

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A atuação do intérprete de libras em campeonatos

Jessyka explica que, na maioria das vezes, o intérprete de libras atua antes e depois das partidas. Mas, para se chegar a essa fórmula, foram necessários alguns testes e pedidos de feedback. 

– Primeiro, a gente testou intérprete de libras durante todo o campeonato, tanto pré-jogo quanto pós-jogo. E os próprios surdos apontaram: “Ó, durante os jogos, não é legal ter intérprete de libras, porque fica muita informação visual” – recorda.

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Jessyka Maia de Souza, 26 anos, de Florianópolis (Foto: G1 SC, Reprodução)

Em jogos mais parados, em que os jogadores têm tempo de olhar para o intérprete e também ver o que está acontecendo na tela não são um problema. Porém, a maioria dos títulos competitivos exigem bastante atenção. Ela cita como exemplo dos jogos de tiro em primeira pessoa. 

– É tudo muito rápido. Se você piscar, olhar para o lado errado, você já perdeu alguma informação. Então, eles (surdos) preferem que, durante os jogos, durante as partidas não tenha o intérprete de libras – explica Jessyka. 

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Assim, o profissional atua no pré-jogo, apresentando os times e as regras, e após a partida, falando sobre o resultado e fazendo análise. O intérprete tanto pode fazer a tradução para libras de algo que está sendo dito por outra pessoa quanto pode fazer a narração. 

As diferenças a partir do apoio de um intérprete

A estudante de biblioteconomia da UFSC Mariana Solano, 20 anos, é surda-oralizada (fala em português). Ela diz que nos jogos eletrônicos um intérprete traz uma qualidade muito melhor em relação às legendas automáticas para as pessoas com alguma deficiência auditiva. 

– Tem muita diferença. A legenda automática acaba puxando palavras nada a ver com o contexto e acaba tudo embaralhado. Mas com um intérprete… Ele não é um robô, é uma pessoa. Então, além de pegar as palavras certas para a gente, em versão de sinal, também faz uma ótima interpretação porque a Libras é uma língua da cultura surda – diz a jogadora. 

Mariana, que também já participou de um campeonato de “League of Legends”, afirmou que o intérprete também ajuda a trazer elementos para um melhor entendimento por parte das pessoas com alguma deficiência auditiva, não é uma simples tradução. 

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– A cultura surda tem as próprias piadas e entendimento. Aquelas frases que são ambíguas, o surdo não vai entender. O intérprete vai fazer entender. Vai explicar de outra forma ou usar exemplo semelhante. Isso é muito legal! – comenta Mariana. 

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Guilherme Andariola e Jessyka juntos (Foto: G1 SC, Reprodução)

Outro jogador que também participou do campeonato é Guilherme Andariola, 23 anos, que estuda ciências da computação na UFSC. Ele conta que a interpretação em libras torna tudo mais divertido para quem tem alguma deficiência auditiva. Ele é surdo e usa a linguagem de sinais para se comunicar. 

– Com o intérprete de libras, consigo acompanhar. Então, por exemplo, fica mais empolgante a questão da gente conseguir assistir aos jogos. Fica bem mais legal – relata.

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Guilherme quer se jogador profissional e está otimista com o que está por vir em termos de acessibilidade. 

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– Acredito que no futuro a gente vai ter, por exemplo, locais com intérprete de libras, que antigamente não tinha. A gente não via, não tinha nada em libras. Também campeonatos, não tinham em libras. Agora, está começando uma coisa nova. É bem inovador, estou gostando bastante – declara. 

Ele aponta ainda que estão surgindo jogadores com outros tipos de deficiência. 

– Também estão aparecendo novas pessoas com deficiência, como por exemplo, cadeirantes, participando. Por isso que a gente precisa se unir. Para, no futuro, a gente lutar, todo mundo junto, pelo nosso movimento, pelas nossas conquistas – conclui.

“A acessibilidade digital abre horizontes”, defende especialista

“A acessibilidade digital permite que o surdo não se limite apenas a informação que é trazida pelo seu círculo de amizade, familiares que sabem Libras. Ela abre horizontes para que os surdos tenham mais acesso à informação advindas de outras fontes e lugares do país”. A afirmação é da Fabíola Rocha que é cofundadora e diretora-geral da startup catarinense Signa, para tornar a educação mais acessível para a pessoa surda.

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Fabíola Rocha, cofundadora e diretora-geral da startup catarinense Signa (Foto: Divulgação)

Devido à incansável busca de soluções para aumentar a inclusão dos surdos tanto no mundo físico quanto no virtual, Fabíola começou os primeiros passos – junto dos sócios – na startup em 2015. Desde então começou o desenvolvimento de uma plataforma de educação on-line para pessoas surdas. 

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– Trabalhar com a Signa é ter a possibilidade de colocar em prática o acesso ao conhecimento e informação que a comunidade surda tem direto, inclusive por lei – explica.

A solução foi de uma plataforma com uma variedade de cursos em libras e com legenda, sem concorrentes no Brasil, e grande parte do conteúdo foi desenvolvida pela própria comunidade surda. Em 2019, a startup ficou entre as seis melhores do mundo no prêmio Next Billion, realizado durante o Global Education and Skills Forum, em Dubai, nos Emirados Árabes.

Outro reconhecimento veio do Massachusetts Institute of Technology (MIT), no qual a startup foi uma das finalistas da América Latina do Inclusive Innovation Challenge, que premia empreendedores ao redor do mundo que usam a tecnologia para reinventar o futuro do trabalho.

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