Quinta-feira Santa. Poucos dias ao longo do calendário inteiro são tão propícios a que rasguemos o peito com as próprias unhas para ficar frente a frente com o nosso coração. A véspera e o tríduo pascal estão densamente carregados de simbolismo. Não se trata apenas do sentido religioso, que erige dogmas e recorta limites. Amanhã é o dia da Paixão, mas para que haja o padecimento da Sexta-feira Santa é preciso vigorar plenamente a grande quinta-feira, com a Última Ceia, do fatalismo de Judas Iscariotes, a Vigília no Monte das Oliveiras, o lava-pés, a sagração dos santos óleos. Esses quatro dias são devotados à transfiguração da realidade, quando janelas deixam entrever o mistério por meio do afigurativo. É um lapso benfazejo para sopesar, afinal, o que nos faz viver. O que nos move pelo mundo. As nossas convicções, sem as quais deixamos de ser o que somos.
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O nosso leitmotiv é um tesouro enterrado e esquecido, soterrado por formidável massa de certezas, dificilmente o visitamos, nunca o contestamos. O mundo e o instante em que vivemos são pródigos em subverter as coisas mais importantes da nossa existência. E não estou a falar em alma, em salvação eterna. Essas são dimensões amplas demais para uma crônica. Quais são as coisas que consomem tempo, atenção, saúde e vitalidade? Todos os dias, transformamos esses três bens em moedas de troca, mas dificilmente nos perguntamos: o que exatamente estou comprando com isso que, ao fim e ao cabo, é a essência da vida? Caso houvesse um momento adequado para se fazer essa pergunta, seria o agora.
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O universo inteiro rege-se por dualidades, num permanente movimento de pesos e contrapesos, em que os opostos se alimentam. O escritor judeu Amós Oz, uma das poucas vozes essenciais do nosso tempo, escreveu um livro estupendo chamado Judas, no qual defende a premissa da lealdade do traidor. Segundo Amós, Judas desempenhou um papel sem o qual Cristo não cumpriria sua missão. Assim, a dualidade da transição entre a quinta de Judas e a sexta do Nazareno convida-nos a rever tudo que nos faz acreditar que somos infalíveis e bons, pois na humildade do lava-pés é benfazejo que se manifesta o que há em nós de superior.
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