Num silêncio obsequioso que só não é maior que a sua perícia, nosso pai faz a faca deslizar suave abaixo da pata esquerda até cravar no coração. O animal é demasiado grande para suas perninhas curtas, desesperadamente remando no vazio. Os pequenos olhos inexpressivos não lhe acodem. Seu grunhido atravessa a madrugada, inocente e choroso, numa queixa dolorida. Todo o inexplicável cabe naquele som, que vai diminuindo aos poucos, passando de grito a um acalanto, como se ninasse o próprio fim, até soçobrar num soluço só. O porco jaz, flácida montanha de carne e banha. O intestino ainda peristalta e põe para fora os últimos excrementos. E o estorvo daquelas fezes é posto para o lado com a mesma faca untada em sangue seu ainda quente.

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O boi é taciturno. Esculpe sua dignidade na pedra do silêncio. Vai tangido por um homem estranho. Com passos firmes, pela última vez, sobe caminho da colina. Os meninos vamos ao derredor. Solidários no mudo pânico, os olhos cheios de dedos para ver o incompreensível. Amarrado a um lenho sem folhas, o boi não tem sequer o macio de uma sombra. O homem que esfaqueia não sabe seu nome. Nunca viu o boi no arado tombando terra para semear o trigo de fazer pão, não andou no carro do boi, nem somou esforços de destocas brutas. Erra a jugular na primeira facada. E o boi desata um mugido agônico. Sua força retesa as cordas. E uma dor dupla me atravessa o peito, pois é em mim que o golpe se crava. A voz do boi deságua em meus ouvidos no sofrer de um pedido sem palavras.

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Quero gritar para o homem da cidade: “Ele se chama Mansinho!” Um nome humaniza o boi. Quem sabe ele o mate com piedade. O corte seguinte jorra sangue escuro. O boi prolonga um mugido que atravessa as campinas e os montes, trespassa um rebanho de nuvens e se lança igual a cometa solto no espaço. Algum dia, será revisto feito o brilho ainda vivo de uma estrela já extinta.

O boi era o animal mais grande – ainda não fazíamos questão de falar certo – do nosso mundo infante, como um irmão mais velho, forte e conciliatório. O porco, o mais terno, macio, morno e amigável. Faltava pouco para ser gente. Com eles, morreu a inocência da infância. E o olho aberto do boi espelha a primeira beronha num raso voo em órbita sobre a carne que principia a se decompor.

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