Está no canavial. Aos 97 anos, poderia dar-se aos favores da idade, mas, arcado sobre o zenzo, com seu pequeno cão, anda e trabalha vagarosa e obstinadamente. Viveremos juntos os derradeiros passos do outono, os mais belos e profícuos que se poderiam desenhar na prancheta do universo. O tempo se comporta como um coadjuvante de estúdio, voluntarioso e comedido, tal qual fosse temperado num botão de sintonizar o rádio. De sexta a domingo, ares de infante, a iminência profusa dos acontecimentos banhados em luz e temperatura amenas. Na segunda, o termômetro cai pela metade. Finíssima garoa pulveriza as abas enegrecidas dos paióis. Brinca no ar levada a pulso de vento. É a pele do outono que se despede.
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Seu Affonso Lütke esteve tocado pela graça descida pelo Espírito Santo. Atento, cordial e cuidadoso, nos recebe no seu comedimento entre curioso e ressabiado; e a mesma frase irônica por saudação:
— Que bom, chegou mais gente para o trabalho.
André dorme o olho na mira da câmera; Djin mergulha sorriso e palavras no pote de meiguice para as primeiras das muitas trocas desses dias intensos que avançam sobre nós como um presságio. Conosco, ainda, as filhas, Rosane e Dolores Lütke; completam a equipe, Anderson e Kleber. Temos a missão de filmar um homem inteiramente cabido em seu mister. O trabalho lhe é indissociável como um talhe de alfaiataria. Por todo o caminho entre o canavial e o galpão centenário do velho alambique enegrecido, as bergamotas nos acodem com seus amarelos desesperantes.
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Camada a camada, mergulhamos na câmara da memória com a delicadeza de quem retira a gaze de sobre um ferimento. Ali há muitas portas fechadas às quais batemos com o nó dos dedos na nogueira. Numas, ouvimos o tilintar das chaves, sem que o trinco gire. Noutras, as tramelas se abrem num fluir de sabores e sons e cores que bailam num entrelaço de saudosa amorosidade. É assim na varanda do seu Eugênio Bergamann, o último de seus colegas de escola. Meu Senhor! No velho alambique, cantou, tocou violino, leu Fernando Pessoa, fez rodar a rangente moenda e, pela última vez, acendeu o fogo no destilador. Docemente, tudo se despede. Antes que chegue o inverno, as bergamotas cintilantes entregam o açúcar de seus gomos como pequenos sóis de afeto.