Espocam ao longe os foguetes do 12 de Outubro, é dia da criança, de Nossa Senhora da Conceição de Aparecida e da chegada de Colombo à América. Amanhã, quando se espera que essa crônica seja lida, nada mais restará dessa tripla efeméride. Assim, demoro longamente a depor os dedos para tecer esse breviário sobre o ontem.

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Quando ainda não contava um ano de idade, a criança que me habita teve um surto epiléptico. Noite do interior, a casa de madeira na clareira do bosque estava iluminada pela luz de fogão a lenha. Aflição dentro da noite. Nossa mãe punha uns paninhos úmidos na testa do menino, trazia ao colo, levava ao sereno, cruzava o peito, a testa e o nariz com infusões de folhas aromáticas. Mas, principalmente, nossa mãe se apegava à sua fé, em rezas cochichadas aos borbotões do desespero, clamava, pedia e prometia aos santos e aos céus.

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Era a crise final. Nada reanimava o menino. Um anjo desses de ilustrações bíblicas estava pronto para transitá-lo em seu fanal. Postado no pequeno alpendre, olhava a cena com enfado, mas não se permitia interromper o transe de nossa mãe, embora o menino em seus braços já estivesse roxo, um embrulho esvaziado do sopro cardiorrespiratório. Quando o anjo fez menção de subir, nossa mãe apelou para Nossa Senhora de Aparecida, com todo fervor que lhe impunha o auge do desespero: vida, doçura e esperança nossa, salve!

E não sei bem se por misericórdia ou porque já era findo o turno do anjo, o menino recobrou o suspiro num susto. A noite alta e os astros mais distantes arfaram no mesmo ritmo daquele peito infante, a testemunhar em sobressalto o exato instante. Seria para sempre um menino tristonho e caroável a crenças. Antes que completasse dez anos, nossa mãe o levou para pagar a promessa na grande basílica do Norte. Não trazia lembrança da graça alcançada, mas suspirou fundo ante os gemidos que evolam na sala dos milagres. Espiava o vasto mundo pela primeira vez sem as trancas do seu portão restrito. Desde então, soubera: onde quer que fosse, levaria o acanhamento do seu feitio, os brinquedos de carretéis, o gosto de cidreira adoçado com mel de arapuá, uma sombra no olhar, a mercê recebida e a melancolia de um anjo que perdeu seu paraíso.

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