Só para os nascidos em maio será sempre outono a cada primavera em suas vidas. No Mamborê de 1966, naquelas lonjuras campesinas do Lajeado, vinha-se ao mundo pelas mãos de parteira, em trabalho caseiro, com benzeduras, infusões e no amparo de vizinhas. A casa velha irrompeu a última noite de espera numa manhã alvoroçada, com chaleiras ao fogo e lençóis alvíssimos, fervidos e anilados para receber o bebê.
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Meu segundo maio é uma lembrança tão antiga que pode ter sido inventada: vejo nossa mãe estendendo sete lençóis numa manhã de sol. Depois de muito esfregar, bater e enxaguar, ela os agita dentro de uma tina com água anil. Para torcer, a pequena Arlete segura numa ponta, enquanto ela trança na outra, fazendo cair uma líquida cortina de um vívido azul que rivaliza com o céu de maio. A criança espia deitada no cesto entre os pregadores de roupa que ela junta, um em cada mão e um terceiro na boca, enquanto alisa o tecido estendido no varal. O menininho de olhos tão grandes, bem antes de ter cabelos e dentes ou saber o nome das muitas coisas do mundo, colheu o alumbramento dessa visão: sete lençóis enfunados como velas ao vento boreste, tangendo um navio imaginário que singra o sogueiro entre vacas, arribando um alarido pastoril, o grunhir das criações, cantos de galo, cacarejos, chilreios e mugidos, enquanto a nave atravessa a este bordo do tempo. E aquela porção de água anilada, que se encapela e espuma ao toque do algodão nas enxáguas, como vagas movediças que se rompem ao corte de uma quilha, para sempre me destinam essa toada. E nesses últimos 50 anos, “nada de novo há no ranger das tempestades”.
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Em maio, todas as tempestades estão adormecidas feito bebês que respiram com o corpo inteiro durante o sono. Nada é súbito, até mesmo os infartos mandam recados sem fulminações sumárias. Um Sol vacilante acentua as curvas dos caminhos, os outeiros sombreados evocam iminências que se encaminham bovinamente aos entardeceres. Mãezinha tinha um medo, quase pânico, de que um dos meninos fosse sozinho apanhar água na beira da mina e pudesse padecer de afogamento. Hoje, mais que nunca, é o primeiro dia do resto de nossas vidas. A ampulheta foi virada mais uma vez, e a imperceptível areia do tempo continua a exercer seu ofício de fiar tessituras impalpáveis.