Abstrai o som da casa, a TV ligada, as estripulias de teus filhos; elide brinquedos e roupas de ocasião; suprime as visitas de época e pensa nas crianças. Põe de lado, por um instante, o lenitivo das férias; suspende os sabores típicos: o doce dos panetones, as amêndoas e castanhas, as frutas cristalizadas e o cheiro de temperos pairando sobre os assados na cozinha. Só por um átimo de tempo, interrompe a ordem natural desses dias e noites tão felizes e põe teu pensamento naquelas crianças feridas, sangrando aterrorizadas e morrendo e sobrevivendo em Aleppo.
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Põe-te no lugar onde caem as bombas e trucidam as metralhas. Faz de conta que perdeste essa certeza líquida e certa que te guia; torna incerta a segurança da casa e do carro, a magia das vestes brancas, do banho de mar, dos vinhos flutuantes em ondas de alegria, das ceias fartas em mesas repletas de amorosa convivência. Apaga tudo isso. Tenta imaginar o súbito desaparecimento do teu lar, da rua que era tua, do bairro que habitas, da cidade inteira onde moram tuas memórias e afetos. Dilui tudo, até desaparecer o lugar onde era o teu país.
Quando espocarem os fogos, intenta as bombas e morteiros; quando os meninos estiverem muito ruidosos, pensa na mudez traumática daqueles olhos infantes em estado de choque; quando dobrarem os sinos, ouve as sirenes; se houver bagunça pela casa, pensa nos escombros dos desabrigados. E naquele instante em que todas as vozes, todos os cânticos, todos os hinos, todos os clamores desejarem uma noite feliz, reverbera o clamor das mães que lamentam seus filhos. Em algum lugar, a estrela guia é só o voo de um Sukhoi russo, um disparo que explode o clarão do desespero. E o resto é deserto.
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Sim, mesmo ante o Menino na manjedoura, eleva teu coração àqueles que choram sem que haja ouvidos e tecem um silêncio de olhos aterrorizados, muito além do medo, do frio, da fome e da orfandade. Hoje é o primeiro dia do nosso verão e depois de amanhã já é Natal. Mas em Aleppo começa o inverno e as bombas continuam a cair. Por fim, sente que o abandono desses meninos se confunde: eles não sabem onde vão passar a noite fria, estão lá fora, no mesmo Oriente, e vieram para reforçar o teu espírito natalino.
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