A cidade brame como o mar do Recife aos pés da manhã, alguns homens e outro tanto de mulheres acordaram no meio da madrugada para fazer soar o ritmo da cidade, ferindo essas evocações sonoras. A chama do fogo onde aquece água para o café projeta na parede uma procissão de sombras, recolho ao relento os gravetos verbais para essa crônica que escrevo em 19 de abril, dia do centésimo trigésimo aniversário de Manuel Bandeira, o grande poeta brasileiro. Conheci-o no auge dos meus 17 anos, ébrio dos vates românticos, neguei três vezes três aqueles poemas absconsos, ralos e de rimas fáceis que a professora Tamar nos lia no livro de língua e literatura. Amofinava-me aquela simplicidade de “bão balalão” sem que desconfiasse que era essa sua grandeza: as coisas mais chãs, “os elementos mais cotidianos”, que lhe mereciam poemas.
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Com que desprezo peguei o seu “Estrela da Vida Inteira”, debicando a esmo um poema e outro sem encontrar a voz do poeta. Mantive-me infenso à sua “Andorinha”, e mesmo “Passárgada” não me fazia gosto. Foi ouvindo a entonação e o ritmo, o entusiasmo e os acentos dos colegas de turma que troquei rima por ritmo, sentimentos por palavras, e encontrei o “gostoso português do Brasil”. E, enfim, o Bandeira aferrou-se às minhas afeições de modo tal que incendiou os versos que escrevi, cheios de metro e lirismo. Abandonei definitivamente a balda de fazer poemas evocando colunas gregas, heróis e lendas, para aceitar somente a pura poesia que pulsa em todas as coisas. Como voltar a praticar versos depois de ler “o último poema”?
Sua poética tornou outro o jeito com que caminharia sobre o mundo. Como poderia ficar imune a “Momento num Café”? Depois que li “A Morte Absoluta”, estancou-se em mim o último eflúvio de glória parnasiana. Li esse poema no caminho ao voltar da escola. Diariamente, saía do Vicente Rijo e seguia a pé até a rua Via Láctea, 147, no Jardim do Sol. Foi nesse transcurso que li, reli, tresli. Desde a primeira leitura, naquele distante início de tarde de sol e calor de 1985, num ponto qualquer da rua, nunca mais pude morrer de forma distinta, senão dessa, absoluta e sem vestígio.
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