Tenho três discos (long play!) legendários: Janis Joplin, Creedence e Bob Dylan, comprados nessa ordem, assim que consegui meu primeiro salário de garçom, em Londrina, na aurora dos anos de 1980. Ela, pela dor expressa na voz, e a banda, pela pegada roceira do rock, que caía tão bem a um garoto de Mamborê. Quanto a Dylan, nunca soube direito quais eram meus afetos, mas foram fartos e definitivos. Das palavras cantadas em inglês, sabia bem pouco: uma mulher solitária que chora ao microfone; alguém vendo a chuva cair e o mistério de uma resposta soprada ao vento. Certamente, muito mais imaginava que entendia sobre o que eles cantavam. Com o tempo, o Creedence virou uma fotografia na parede dos primeiros bailes, e a Janis, a eterna cúmplice da melancolia.

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O Dylan cresceu em ser aquilo que sempre foi: uma voz ruim, um violão despretensioso e aqueles cacos de gaita soprando melodias tristonhas. Bem mais do que um cantador, essencialmente Dylan é a voz de um contador de histórias. E com esse andar desconcertante, o cara ganhou o Prêmio Nobel de Literatura. Não vou entrar no mérito da qualidade literária de suas letras, os seus poemas cantados. O que quero dizer é que suas canções sempre cumpriram em minha vida o papel de um bom livro: incendiar a imaginação e demolir minhas precárias certezas. A cada vez que o “leio”, meu prumo muda de lugar. Isso não se deve à sua musicalidade, não emana da sonoridade, nem é o contágio do ritmo: é só um personagem que se desloca na imaginação, pela força de uma voz literária, com o sabre das palavras, o salobro das formas e o saibro das imagens. O dizer de Dylan se concilia com o conto, a crônica e a poesia. É um vulto de botas perambulando sozinho na madrugada vazante.

O 20 de outubro é dia do poeta. Aniversário de Rimbaud, que foi bardo aos 17 e Prometeu aos 21. Que contrabandeou no deserto o fogo que ainda nos arde: não aceitar outra poesia que não seja a profética, a que caminha sobre os escombros do seu tempo e antecipa um futuro impróprio. Rimbaud e Dylan têm em comum muito mais que o “pensamento cantado” de uma mente ruidosa: ambos são personagens caminhantes de sua própria obra.

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