Ainda na cama, a manhã que vai nascer demora a pôr o pé fora da densa coberta da noite. O frio é intenso e tira lascas da pele como faca que descama peixe. Muito a custo, na orla da manhãzinha, vão sendo pincelados uns debruns azulados, lá para os lados do mar, de onde se espera, com uma confiança posta à prova, que o Sol venha a surgir na próxima hora.

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Coo o primeiro café do dia numa solidão acompanhada de vozes amotinadas a bordo do batel da memória. Quando enfim chega a manhã, aparece como um fantasma, embrulhada num lençol todo branco, estirado em fios de névoa.

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O osso de uma ideia não me larga desde a noite anterior. Haveria de recordar aquela manhã remota em que fui levado a conhecer o gelo. Foi em 18 de julho de 1975, no sótão da casa grande do sítio novo. Meninos recém-despertos, nos dividíamos entre alaridos de surpresa e da friagem dolorida. Naquela madrugada, ocorrera a trágica “geada negra“, que dizimou os cafezais do Paraná. Apenas duas décadas mais tarde, já como repórter em Londrina, eu sofreria toda a angústia daquela manhã em que fascinava-me a novidade da água enrijecida como vidro e a queimar nossa pele feito fogo.

Ontem, éramos dois homens à borda da madrugada. Parei no boteco para aquecer com um Schnapp amargo. O trabalho da noite fora sobre as pessoas que moram na rua e como enfrentam essas temperaturas baixíssimas. O desabrigo deles ainda me tira o chão. Do outro lado da rua, uma caixa de papelão flutua sob o claro meio escuro do poste de luz. O homem que a leva sobre os ombros imita a clássica figura de Atlas, a divindade grega que carrega o mundo nas costas. Como um caracol, ele carrega consigo a própria casa.

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Dei-lhe um pouco de minha carteira e ele repartiu comigo um sorriso cabisbaixo. O frio dele era imensamente maior que o meu. Insuficientemente vestido, de chinelo de dedos, mal alimentado, ele se vai. Quando lhe pergunto onde passaria a noite, senti um travo em seu falar. Ele baixou a caixa, mostrou um acolchoado fino e disse: estou levando esse papelão para forrar o chão. Pensei com Pessoa que “não sou nada, não posso querer ser nada”, senão o arauto desse desconhecido que retoma o seu caminho pela rua deserta e que me dilacera como aquela geada que despedaçou os cafezais há 42 anos.