“Porque somos feitos da mesma humanidade.” Essa foi a derradeira frase de Fernanda. Ela disse ainda no proscênio e já na quinta vez que tentava retirar-se do palco. Falou e foi para as coxias. O seu andar meio trôpego e cuidadoso. Poderia creditar isso aos saltos meio plataformas. Mas ela havia sido bem clara da primeira vez que tentou se retirar: “Estou com as pernas bambas de emoção”. Não apenas as pernas, o corpo inteiro delatava o seu estado, embora ela ainda continuasse firme na voz. O seu domínio da voz é assombroso. Ficou ali, sentadinha, naquele imenso vazio do palco, falando e falando e falando. Quase sem mover o tronco. Falando com a voz e as mãos e os olhos. Só os olhos e as mãos atuavam. Fernanda fala com as mãos, põe assento e determina um tom no simples mover da brancura descarnada de um dos dedos no contraste com o negro do linóleo sobre o palco.

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Somos feitos da mesma humanidade, justificou ela, misturando na voz firmeza e derretimentos emotivos. Depois, se voltou para o palco vazio, deu sete passos curtos e vacilantes até os bastidores. Ninguém viu, mas ela fez do seu emocionado pranto um último ato. Fernanda já havia tropeçado numas lágrimas engolidas, minutos antes, quanto interrompeu a longa salva de palmas para dizer “é a primeira vez que leio… é a primeira vez que leio esse texto para uma plateia tão grande e que me escutou tão silenciosa…”

No escuro e no silêncio, agradeci por aquele instante ao universo. A distância, a chuva intensa, o ardil da serra, o trânsito pesado, a ilusão ótica no lusco-fusco e o tempo escasso não foram obstáculo para ir ao encontro daquele momento. Éramos 2.167 pessoas em absoluto silêncio para ouvir literatura, para ouvir a leitura de crônicas de Nelson Rodrigues. As motivações para o público estar ali foram a abertura da 26ª edição do Festival de Teatro de Curitiba e o encontro com Fernanda Montenegro. Mas o que fez aqueles dois mil universos individuais pulsarem numa mesma sintonia, por duas horas, foi o poder da escrita de Nelson Rodrigues, dentro da magia do palco e no campo sagrado do Teatro Guaíra. No final, Nelson faz uma síntese de si: “Eu aprendi a ser o máximo possível de mim mesmo”. Tendo a crer que foram àquele encontro não só o cronista, a artista e a plateia, mas a humanidade inteira.

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