O que me cumpre escrever não dói, não custa, nem pesa em meus dedos mal-acordados, enquanto ainda desperta o tampo da aurora, e bem sei que tardo diante da “grande flor da treva”. Uma lagarta devora a manhã pelas bordas, antes que escreva teu nome, em letras garrafais, sobre as areias da praia, Vinícius de Moraes. Esse pequeno botão do desejo, tão breve, nunca há de se ferir com a mão que esteve sobre meu caderno de caligrafia e ainda desfia dos lábios um sorriso de professora, ao fixar sobre o papel pautado uma clave, um sol que soa feito nome rimado com a moça do miramar.
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Mas não posso me fiar em versos sem o sentido de prece e a urgência que há nos seus escritos. Há essa grave notícia de primavera, e daqui da minha casa vejo galgar incrédulo, como um envelope sem destinatário dentro de uma carta lançada às vagas numa garrafa prestes a se espatifar na arrebentação sobre os rochedos. Porque hoje é seu aniversário, compromete-se em mim um punhado de esperanças, uma súplica de quando éramos acobertados de mocidade, embebidos de lirismos e dispúnhamos da garantia de renascer a cada manhã, sem se saber envelhecido antes mesmo de cair o dia.
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Ah, onde mais se poderia sonhar com cardumes de beijos? No seu canto cadenciado ficou um Brasil que já não há, uns amores que nunca vieram, uma juventude que não se cumpriu, umas mulheres que se proibiram, umas alegrias que silenciaram, uns versos que não foram escritos. Por que doem tanto aqueles poemas cantados em par com o violão do Toquinho? O piano do Tom ainda soa como grãos de terra semeados na cova ou o sal sobre a couve numa receita de feijoada. E se insinua um prelúdio, uma promessa, uma antecipação da plenitude futura. E, de repente, constatamos que a vez da vida ainda não veio e que só no tempo das colheitas frutificam as frustrações.
Queria dizer numa carta que procrastinamos a tarde rumo ao mar, mas sem embargo da noite, que se alarma em tons dos mais escuros. E como hoje é dia de festa, caro Vinícius, não lhe segredo o sofrimento em Mogadíscio e que no cotovelo da África “há o pranto de uma criança sozinha, numa estrada junto ao cadáver de mãe”. Só o mal medra ali, onde o álibi se alia ao silêncio, a Somálias e milhas daqui.
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