Escrevo no cimo de um outeiro, no momento exato em que os primeiros traços desse dia de cinzas se delineiam lá fora, onde a cidade fia sua teia de cimento e asfalto. Por um breve instante, há cantos de pássaros e uma clara ideia do amanhecer, como um ensaio que adia o horizonte de estreia. No instante em que passo o café, absorvo os primeiros toques do Sol sobre o topo do morro do Iririú. É um animal trêmulo que deixa pegadas de fogo pela floresta. Encontrá-lo, enquanto a noite ainda agoniza, é sempre um susto. Fere de leve a penumbra da mata, como gotas de Van Gogh, e amarra o olhar da gente até que a cor gire para o encarnado e, depois, para os amarelos, que já chegam diáfanos e difusos, minando por entre os verdes, agora, plenamente estabelecidos.

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Pé ante pé, o Sol se esgueira num fogo que arde sem produzir cinza, e vejo crescer dentro de mim o “impoluível silêncio em que escrevo e em que tu me lês.” Reencontro neste verso do Mário Quintana o ensinamento de que, da vida, só ficam lavrados os testemunhos de ocorrência. Além de estar atento, é preciso disponibilidade para perceber aquilo a que nos remete o mais despretensioso dos acasos. Inevitável perceber que as digitais desse humílimo acontecimento deixam um rastro a que Manuel Bandeira chamou de “a cinza das horas”. Tão sutil quanto veio, o Sol desaparece soterrado pelo pálido cinza da neblina que se alça do mar.

E, assim, março começa. Este é o mês em que tudo principia. Pelo calendário dos astros, o novo ciclo de translação inicia-se com o equinócio de outono, em 20 de março, ocasião em que o dia e a noite duram o mesmo tempo. A data marca o começo do ano astrológico, quando o Sol entra na casa de Áries. Este é o ponteiro do relógio cósmico, marcador do tempo real. Algo ainda mais impressionante vai ocorrer em 20 de março: a data finaliza o grande ciclo do Sol, que nos rege desde 1981, e põe em marcha o ciclo de Saturno, também de 36 anos e que só vai terminar em 2052. E, assim, esse março inaugural, que começa justamente numa Quarta-feira de Cinzas, chega carregado de mensagens e nos precipita numa nova órbita, muito além do pó.

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