Última noite de maio. Temperatura amena, de um frio outonal com chuva leve e em dissipação. Uma terça-feira dedicada à ópera para comemorar os 158 anos da Harmonia-Lyra, a mais tradicional sociedade cultural de Santa Catarina. Ingressos retirados à contrapartida de três quilos de alimentos, delimitado apenas pela lotação de seus quinhentos e tantos lugares completamente tomados. Na plateia da suntuosa sede na rua 15 de Novembro, estavam desde empresários milionários até ascetas de vida errante.
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Faltando exatamente um quarto para as 20 horas, o público aflui e cruza com uma passeata que passa à frente em protesto contra a violência à mulher. A apenas uma quadra dali, no ano de 1858, mais ou menos nesse mesmo horário, 23 homens – dentre eles um padre -, reuniram-se em uma das 87 casas da então Vila de Joinville para fundar a Harmonie-Gesellschaft. Seu propósito é “realizar divertimentos com teatro, músicas, canto, danças” aos associados. Em cartaz nessa noite, uma versão reduzida de La Traviata ou “a mulher caída”. A ópera narra o auge suntuoso e o fim trágico de Violetta, a flor bela e efêmera, a dama dissoluta, identificada pela flor da camélia, que arrasta no olhar um coletivo de homens.
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Na sua famosa ária, convoca à libação e ao gozo da vida, essa flor fugaz que nasce e logo morre, pois tudo no mundo é tolice fora do prazer. Sobejamente talentoso, o trio protagonista formado pela soprano Alicia Cupani, o tenor Thompson Magalhães e o barítono Douglas Hahn, acompanhado pelo pianista Matheus Alborghetti, sobrepuja as expectativas. A qualidade vocal e dramática tange toda a tragicidade da obra de Giuseppe Verdi e compensa a privação do fausto musical, perdido pela ausência de uma orquestra.
Foi uma noite prenhe de emoção e propícia à reflexão da atualidade. Pois, ao sobrepor os valores do mundo masculino à mulher que se sacrifica em cena, estabelece uma conexão entre o suplício feminino no palco e a passeata lá na rua. Mas também por oferecer arte da melhor qualidade, acessível e sem qualquer financiamento público. O renascimento cultural da Harmonia-Lyra, nos últimos anos, enseja um bravo! Aos artistas, a quem faz os bastidores, ao público e à presidência de Álvaro Cauduro.
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