As neves de agosto já não deixavam qualquer vestígio pela manhã. O céu absolutamente limpo dava uma vontade de gritar. Sair correndo com os braços abertos e gritar a plenos pulmões, igual só na infância se é autorizado a fazer. Mas àquela altura da vida, urrava-lhe a necessidade de fugir das coisas óbvias. Tinha adquirido a balda de consultar os pulmões a qualquer hora do dia, as coisas só poderiam estar bem quando alinhadas com a respiração. Era uma herança da dor que lhe acompanhava desde os cinco anos de idade, quando teve sua primeira pneumonia. Desde então, dava ouvidos ao próprio peito.
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Preferiu sair antes do sol para evitar o alarido dos turistas com seu excesso de felicidade e roupas. Uma coisa que lhe dava nos nervos eram as fotografias. Aquele ímpeto por imagens que morreriam esquecidas nos celulares e não serviriam para animar as recordações, nem vaidades. Talvez voassem como faíscas de inveja que se espalham pela rede como um fogo de grimpa, para se extinguir sem sequer deixar cinzas. Muitos miosótis de agosto seriam pisoteados sem sequer serem vistos por toda aquela gente que perdera a capacidade de fotografar o mundo com a própria memória.
Urubici é uma cidade pequena. Preferiu ir a pé. Tudo estava deserto. Mesmo os cães que até nas noites mais frias dormem enrodilhados nas soleiras arrabaldinas não haviam despertado. Depois da primeira curva da estradinha de chão, bebeu com profundidade aquele instante de silêncio sublinhado por pios longínquos de saracuras e curicacas. O caminho se encurva para um lado e outro como um lenhador e se perde na plantação de pessegueiros. As dobras da terra um tanto pedregosa formam desníveis até a ribeira das grotas onde se adivinha o murmúrio das águas. Ele juntou entre as mãos quentes que trazia nos bolsos uma haste da rosácea como quem faz uma prece. Estava túmida e fria. Correu uma carícia cuidadosa para não intervir no sono vegetal, percebendo entre os dedos a pulsação do inchaço. Cada intumescência era uma flor prestes a despertar. Não precisou fechar os olhos para ver dentro da mente a grande florada de fins de agosto e um rumor de abelhas no ar.
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