Desistir também é uma forma de luta, dizem os teóricos do suicídio. Todos os dias, quando entro no cemitério, encontro uma serpente nas inclinações sombreadas. Em movimentos sutis, entrada num silêncio cheio de escuta, ela segue comigo aqueles caminhos elevados. Lá em cima, enrodilha-se em um disco multicolorido e dorme à sombra do meu túmulo. Na primeira vez que a vi, fui picado de susto e encantamento, mas a mente aplicou-me o antídoto de realidade: é um ser ilusório. Ela não disse nada, fez uma curva mais acentuada entre as folhas secas do chão e alteou a cabeça para atravessar a trilha de paralelepípedos. Estávamos a sós entre todos aqueles túmulos centenários – cada um é a casa de memórias que fundam existências como fontes de rios caudalosos.
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A serpente se desviou pelo gramado verde como se fosse Alice através do espelho, deixando-me só com meu constrangimento: tudo é ilusão. Ocupado com a carga de apetrechos que levo para trabalhar no cume da colina, desvencilho-me daquele pensamento incômodo. A leve brisa, a sombra do arvoredo e a solidão cheia de braços me saúdam com afabilidade. O Sol aparece pouco por lá, afinal, estamos no coração de Joinville. E quando chega, nunca é como um manto que se derrama por igual, é sempre com fachos de diferentes tons e intensidades sobre cada quadra, como se fossem sóis particulares, ajustados na longa convivência dos jazigos. Já a chuva desce sem qualquer distinção, as garoas salpicam umidade com abençoada brandura e humildade. Por vezes, a névoa engole os chorões e apaga algumas lápides, fazendo com que suas cruzes e anjos flutuem no ar sem qualquer mistério.
O outeiro fala pela voz do silêncio entrecortado por chilreios, pios, gorjeios e pipilos. Sons de diferentes espécies que se ouvem quase com alegria. Dentre todos, destaca-se o piado do tico-tico, de uma tristeza dilacerante. Postado em galhos finos e ressequidos, assobia aquele seu lamento curto repetidas vezes, como se brandisse um osso no ar, em ritmo fluido. É um chamado de solidão. Mas não há desespero, nem comiseração. E quando ele voa, levando seu pio para bem longe, até as lousas suspiram e deixam de doer na alma.
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