Quase ia escrevendo que a grande obra humana é a sabotagem. Fosse só a ingratidão, se poderia ir vivendo com essa dor e analgésicos. Mancar, talvez; gemer, quiçá, mas respirar fundo e seguir em frente, cônscio de que o bem que se faz deve ser esquecido, pois aquele a quem se intenta um benefício poderá sempre estar atocaiado na próxima curva do caminho, com uma adaga entre os dentes e bote no precipício.
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Respiração é vida, uma verdade tão básica quanto essencial. Mas chega um belo dia, dá aquela pontada no pulmão, desconfia-se de tudo, menos do ar. E como naquele poema do Bandeira, o médico sentencia: pneumotórax. O amigo zéfiro alojou-se na pleura. A dor é crônica, mas intermitente: só dói quando respiro. Assim é a vida entre pessoas, tudo é precário e escorregadio, tende a se partir ou solapar sem precedência. As ações mais cristalinas podem gerar chiados, mesmo que seja apenas respirar.
Já ia dizer tudo isso; ao depois, pensei em meus raros leitores. Quase todos de cabelos encanecidos e leitura em pincenê, saúdam-me com um sorriso pendurado entre cenhos e sonhos. Então, embrulhei a bílis para viagem, como se fora uma baguete embaixo do braço, e saí à francesa, feito um flaneur pelo passeio da escrita. Afinal, a lenta digestão das vinganças é sempre autofágica e os tumores do pâncreas são mais devastadores.
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Todos os dias, o cemitério dá-me lições de perenidade. As coisas que ficam não procedem a vontades, as memórias morrem proscritas, perturbadas ou loucas. A existência é um breve agitar-se superfície cósmica. Algo assim: um viandante distraído apanha do chão um cascalho indiferente e o lança sobre a superfície de um lago, provoca uma pequena ondulação que se propaga e dissipa-se à mesma medida. Logo tudo volta a ser a mesma água indistinguível e remansosa, inteiramente submersa e falsa, pois o que se vê é a face ilusória de um espelho que imita o céu, essa vastidão vazia que se veste de nuvens e se despe de ausência num abissal transbordamento azul.
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Veneno e perfume dormem nos menores frascos; ao seu consumo, um exige a vida aos ressentidos e o outro evola indiferente a olfatos, se infensos ou recendentes. Não vai aqui uma queixa, embora eu saiba que mal pago e desmereço a ti, que me lês por agora, imerso nesse arrevessado escrito.