A cerimônia do chá é das coisas que tenho aprendido com os senseis. E ler se parece com essa arte. Das leituras, a mais plena e inintencional, a qual se pode repartir o silêncio sem diminuí-lo, sentir o perfume da clorofila ao despertar de seu breve interregno. Primeiro, pensar que em algum lugar, num tempo que não é esse, alguém acordou cedo para cortar ramos de folhas intumescidas, ainda úmidas de sereno. Carregadas em grandes fardos nas costas, foram desidratadas, trituradas e embaladas. O caminho foi longo entre máquinas e homens, para estarem pontualmente nesse encontro com uma porção de água fervente dentro de uma xícara.
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A infusão desperta aromas, cores e sabores que se multiplicam bem abaixo dos olhos e narinas, na decifração que antecede as papilas gustativas. Deixe em suspenso o gosto da bebida e ponha-se a pensar na rota d’água, igualmente misteriosa, que se desvia da sua samsara sem fim, para repousar, pelo tempo exato que durar seu pensamento. Ambos são caminhos circulares, num eterno recomeço. Esse punhado de folhas trituradas soube cumprir o seu ciclo, desde a semente até a árvore, ao beber da terra os minerais, ao tragar a luz e o ar, ao ler sua partitura genética e constituir magicamente os elementos sensoriais que nesse instante abrem em ti as percepções da sensibilidade. Basta dares o primeiro gole, e o trem dessa longínqua viagem pousa numa estação, para embarques e despedidas. Mas aqui ainda não é o seu destino que, depois de recolhidos os novos passageiros, prossegue.
Uma xícara de chá é tudo que posso compartilhar ao ocaso de setembro. Um festim paupérrimo; um sutil repasto na iminência do ordinário. É dos mais humildes dos prazeres, encontrável até na mais modesta das habitações. Entanto, um deus completo mora nesse brevíssimo ato de levar a xícara à boca. Um deus cabe nesse beijo entre lábios entreabertos e a louça, suspenso na estase do êxtase. Olfato e paladar perseguem as pegadas da água, do ar e das folhas, recolhendo vestígios de manifestações alhures. À chávena da escrita resta sorver o momento que antecede o primeiro gole e faz girar a chave, enquanto lá fora setembro morre.
P.S.: Para Karl, Zé Maschio e Maruyama.
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