Joel Gehlen: “Ainda me aguarda na memória um gosto de terra salgada de lágrimas e um tempero de mágoas”

Das interditas da infância, a mais profundamente fincada era a proibição de comer terra. Nossa mãe tinha um medo quase pânico, como se todos os males do mundo fossem ingeridos com o chão, e punha os irmãos mais velhos de sentinelas a tomar conta para que os pequenos não infringissem a coisa proibida. Muitos foram as chineladas que lhes acarretei pela burla dessa lei materna. Garrei o hábito de comer torrões, antes mesmo de falar. Acho até que os diluía no leite das mamadeiras, à guisa de achocolatados.

Comia na alegria, mas, principalmente, nas tristezas. Ainda me aguarda na memória um gosto de terra salgada de lágrimas e um tempero de mágoas. Pequenas mágoas que serenavam no escuro do porão, sob o assoalho da infância, para onde me arrastava feito um animal ressentido, com uma cascata de lágrimas a limpar a poeira do rosto. Tempo bom em que chorava por qualquer bobagem, como se o mundo fosse acabar naquele instante, e me consolava comendo pedacinhos do solo seco debaixo de casa, terra que jamais era aguada pela chuva e bebia aquelas bátegas infantes ainda mais flébil do que eu.

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Tanto me alimentei de teu chão, Mamborê, e em tal monta te dessedentastes de minhas lágrimas, que longe da doçura e misericórdia de tua infância, ando sempre errante e confuso pelo vale do degredo. Nutrido de teu seio, me fiz no que sou fígado e pulmões; no que é em mim braços e mãos e cresce na voz que deponho na escrita. E, primordialmente, vem de tuas entranhas o sopro coronário, tão descompassado, com seus noventa por cento de terra dos verdes anos. Disso talvez tenha implicado umas manchas na pele que só nossa mãe conseguia ver. E uma fragilidade, um pendor fatalista, um despedaçamento emotivo que a fazia aflita pôr-me sob o rádio de quatro pilhas — o bem mais precioso que tínhamos — exatamente às três da tarde, para que fosse ungido com a bênção de Nossa Senhora da Conceição Aparecida. Que me perdoem os puros da objetividade, mas o simbólico desse dia, aliado a uma lua de outubro esplendendo em seu quarto minguante, bota na gente uma predisposição comovida.