– O sangue amarelou. Tonho, conhece tua obrigação.

No filme de Walter Salles, duas famílias no sertão nordestino se revezam, há gerações, na matança para vingar uma morte anterior. É matado um de lá e, uma lua depois, o filho mais velho vem abater o de cá, alimentando o fértil terreno do ódio. O roteiro é adaptado do romancista albanês Ismail Kadaré. O código de honra é uma tradição dos montanheses da Albânia, mas quem assiste ao filme logo vê que é costume no Brasil as vendetas de sangue. Soam premonitórias as palavras de Kadaré. “La fora corria março, meio risonho, meio gelado, com aquela perigosa luminosidade alpina que só esse mês possuía. Mais tarde viria abril. Ou melhor, apenas sua primeira metade”.

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Olhe em volta. Estamos encurralados. O que sobrou de todas aquelas certezas que nos animaram? Os lados se partiram e se enfrentam, extremados dentro de um mesmo peito. Dois vazios diferentes, mas um só coração: quando um perecer, o outro finda. Entre março e abril, essa crônica me bate à porta. A penosa e inútil tarefa de escrever, jogar a tarrafa dos dedos sobre o cardume de teclas e trazer nas unhas a colheita agonizante de uma palavra fora d?água, que se debate sem fala, infanta e perecível.

A voz do peixe não cabe na boca tão medonhamente aberta pela ferida do ar puro. E o silêncio se contorce enterrando ainda mais fundo o anzol nos olhos da solitária leitura.

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Lá fora, a última noite de março se move entre as sombras. Nenhuma janela de luz. Tudo é quietude, e no espaço pulsa a rotação dos astros que não se comovem. Nuvens nunca ficam para trás. Mesmo que se aperte o passo, nada as remove do caminho.

Avanço ao lado de uma cerca de arame farpado, com mourões de angico e palanques de canjarana rachada ao meio. É uma passagem de gado que acompanha a vastidão desossada até o outro lado da campanha. A manada não dorme, está ruminado o repasto de quando ainda era dia. No rúmen, as gramíneas verdes de março se agrupam e voltam para os dentes. Entre molares e a baba do boi, um precipício se abre no ríspido azul do céu de abril.

Amainem-se as iras antes que amanheça. Antes que o sangue amarele a vingança, antes de excluir o olho destro ou o sinistro. Abril nasce assustado como uma faca no escuro, com medo da manhã, palpita dentro da noite essa rima de Brasil.