Fiquei bulido a cismar, absconso, com mãos pesadas e pendidas, a remoer a notícia. Foi como a segunda morte de minha própria mãe, tal seu amor, transfigurado em ensino. No Colégio Estadual Vicente Rijo, deixei de ser um moço da roça para tornar-me definitivamente o pai do homem que tenho sido. Devo isso a toda aquela geração de professores que sabiam latim e, de modo indissolúvel, às duas lentes de português e literatura.
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Dona Fernanda tinha fama de severa. E eu trazia assaz motivos de reprovação: andava de súcia com os carinhas que pulavam o muro da escola para beber vinho no Super Jumbo; no recreio, estava na rodinha do cigarro, à sombra espessa sob o ciciar dos cinamomos; andava metido em política, na cooperativa e no grêmio estudantil, o que me compromissava além da minha conta. Vivia esbaforido, sempre cinco minutos atrasado, com a roupa amarfanhada e as lições num relaxo. Minha letra era um garrancho. Tinha o cabelo pelo ombro e uma guitarra Fender a tiracolo que nunca aprendi a tocar. E o mais mortal dos pecados: trocava o cê-cedilha por dois esses e vice-versa, como incorro ainda agora e recorro amiúde à humilde correção dos dicionários.
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Ao voltar das férias, a mestra que fora a encarnação da bondade vai ser substituída por dona Fernanda, que seria tão somente justa. Professora Tamar levara-me pela mão à inquietude criativa da leitura e da escrita; dona Fernanda procederia à elisão das estimas ilusórias. Nunca me esquecerei dela esperando à porta da sala, o colarinho muito branco dentro de um suéter celeste, o cabelo impecável, entrega-me seu melhor sorriso de confiança e um caderno de caligrafia para exercitar a letra. Jamais descuidava uma vírgula sequer dos melhores alunos, tinha-os em estima e orgulho, e armava-se de severo afeto para concitar os que estávamos entre os piores.
Sua magia era rir sem perder o punho, jamais deixava arriar as nossas presunçosas vidas que orbitavam seu universo. A cada aluno, devotou as cintilações do seu saber. A exemplo daquela parábola, não descuidou dos desgarrados, afiançava-nos o conhecimento dos livros, o enlevo da ópera, o fascínio do cinema. Sua regência atiçou o melhor, mesmo em sujeitos casmurros e taciturnos, tão fadados ao insucesso quanto aquele com o lídimo barro de Mamborê encalacrado sob as unhas.
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