A noite chega feito um bonde sem trilhos sobre a fragilidade da tarde, contrasta com a chuva suave que volta a cair com melancolia. É a hora mais triste do dia. Sombras sobem pelas paredes e se lançam no refúgio dos pensamentos. Aqueço uma xícara de chá que a louça branca abraça e balança entre os dedos e o caminho dos lábios. É apenas uma porção de água turva e quente, um aroma imperceptível de gosto sutil. Mas, antes mesmo do primeiro gole, reconforta do frio e aquece no desamparo daquele instante ao fim da tarde. Não são as moléculas líquidas, aromatizadas, tingidas e aquecidas que provocam esse súbito efeito sobre um corpo ao pé do mundo. O que me salva da pequena morte de estar triste são as evocações, ativadas pelas propriedades que eu mesmo atribuo tanto ao chá quanto à xícara que o contém. A simbologia desse brevíssimo ritual é infinitamente maior do que os elementos que o compõem. A esse conjunto de ingredientes damos o nome de cultura.
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O corpo humano, assim como o dos pardais ou de um ornitorrinco, é um amontoado de células ordenadas que processam meioses e mitoses. Basicamente, basta comer alpiste para que a vida continue. Mas a manutenção da estrutura física não nos sustenta, precisamos existir simbolicamente. Sem isso, não compreenderíamos o mundo e nem mesmo a própria existência. E muito menos ainda a morte. Tudo que há no mundo, apreendemos e organizamos por meio de símbolos, como as palavras, que fazem com que possamos transcender à pequenez original meramente instintiva. A capacidade de significar simbolicamente é um dos mais notáveis engenhos da cultura. É o que nos torna humanos. Para além da matéria, tudo é metafórico, desde a comunicação mais banal até a própria invenção e aceitação de um Deus.
E nada mais simbólico do que o dia de hoje, Corpus Christi, um dos mistérios mais profundos do cristianismo. Não importa o quanto você creia, se te pões em genuflexo contrito sobre o peito e a hóstia consagrada ou se descrês; se te confranges e segues orando em procissão ou pisas indiferente sobre o tapete de serragem colorida. Independentemente do tipo de gente que somos, precisamos existir simbolicamente.
Pois, se há uma verdade universal, é a de que nem só do pão vive o homem.
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