Hoje é dia de Iemanjá, e três dimensões me atravessam na sua presença: a religiosa, a mitológica e a cultural. De vez em quando, sou acusado de ser um cara branco, cristão e ocidental. Não nego, nem rejeito, meus atos me confirmam melhor que as palavras. Penso que o ser é sempre maior, mais profundo e superior às chãs apreensões. É no inexplicável que a vida se anela. Sou menino da montanha, nascido longe do mar, fui batizado, crismado e cruzado na testa com a cinza que a todos se destina. Talvez por isso me afinco com um credo sem receio nessa força que é das águas, mas que também se aplica ao chão de outros navegares. Desde menino, inunda-me o fascínio de sua presença, feita inteira de música e mistério, de poder e de fé.
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Foi pela mão do medo que a conheci ainda nos quintais da infância, quando ia buscar água na fonte, tão pura quanto perigosa, que nos abastecia lá nos longes do Lajeado. Perigavam em nosso viver o fogo e a água, que tanto atraem as crianças, um descuido e lá estava um de nós, prestes a uma traquinagem que podia custar a vida pouca que nos sustinha. Ir sozinho à fonte era das intenções mais proibidas. Uma vez sozinhos à margem, ela viria nos tomar pela mão e iríamos quedar defuntos no fundo silencioso e frio, dormindo para sempre no leito daquele mistério que nossa mãe fazia crescer em nosso imaginário. Plantava o medo para colher segurança. Mas o efeito era contrário, a curiosidade vencia o receio. Como a mãe-d?água só aparecia para criança desacompanhada de adultos, vezes sem conta evadi-me nas tardes de modorra para um encontro secreto com a deusa da fonte. Punha-me perigosamente à margem, feito um rosto de narciso, num flerte de se afogar. Ela nunca veio com o anil líquido de seu manto, mas, hoje sei, esteve sempre presente enquanto mãe amorosa e divindade protetora.
Com o tempo, conheci a Iemanjá das canções praieiras, a divindade da beleza e da vaidade na musicalidade baiana. Vieram as oferendas à beira da praia, as flores com perfumes e também as procissões da Senhora dos Navegantes. Hoje é dia dela, tem festa no mar, e no âmago do mistério nos dimensiona e engrandece para muito além da pequenez que nos limita ao barro do ser.
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