O isolamento social, causado pela pandemia de coronavírus, tem aumentado os níveis de ansiedade e estresse, entre outros problemas de saúde mental. Entretanto, para uma parcela da população, o preço a se pagar tem sido ainda mais alto. Noah se descobriu pessoa transgênero em 2017. Depois de solicitar a documentação social, no ano seguinte, passou a se identificar como homem trans. Era entre os amigos e principalmente em meio à comunidade LGBTI que ele se sentia reconhecido e livre para se expressar. Mas a partir de março deste ano um novo desafio passou a fazer parte da rotina dele. Estar com a família, 24 horas por dia, trouxe uma nova dor.
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– O isolamento tem sido difícil. Moro em uma rua familiar, como não sabem lidar com meu gênero, se referem a mim com o nome de batismo. Sinto-me desconfortável – conta.
Se o espaço de uma casa pode parecer pequeno, sufocante, imagine quando ele se reduz a um quarto. É lá que Noah Caetano Fagundes, 19 anos, escuta música, lê, brinca com o cachorro, se sente confortável para ser ele mesmo. Ele mora com a mãe e a irmã em Florianópolis e vive uma realidade que não é única.
O isolamento trouxe repercussões graves entre a comunidade LGBTI. Uma pesquisa organizada pelo coletivo #VoteLGBT, em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), revelou que entre lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis, os índices de desemprego e problemas de saúde mental são maiores se comparados ao restante da população. Foram mais de 10 mil entrevistados em todos os estados da União.
Entre essas pessoas, lidar com problemas de saúde mental durante o isolamento social é a preocupação mais recorrente. Foi esse o maior temor registrado entre 44% das lésbicas; 34% dos gays; 47% das pessoas bissexuais e pansexuais; e 42% das transexuais. Os LGBTIs já conviviam com esses males em maior frequência do que as demais pessoas. Segundo dados da Associação Americana de Psiquiatria, esse grupo populacional tem mais que o dobro de chances de apresentar algum problema de saúde mental durante a vida, quando comparados aos pares que não integram o grupo. O estudo da #VoteLGBT revelou que 28% dos entrevistados já receberam diagnóstico prévio de depressão. A marca é quase quatro vezes maior do que a registrada entre a população brasileira, de acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde (2013).
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Problemas no convívio familiar foram citados como maior dificuldade durante o isolamento social por 10% dos LGBTIs. Desses, um em cada dois está na faixa etária entre 15 e 24 anos, o que demonstra algumas das dificuldades enfrentadas pelos jovens no próprio ambiente residencial. Adequação às novas regras de convívio social são o segundo fator de maior preocupação entre gays (19%) e lésbicas (14%). O fator financeiro também impacta essa população, pois 20,7% dos entrevistados disseram não possuir renda. Outro dado preocupante é que 21,6% dos LGBTIs informaram estar desempregados, enquanto o índice entre o restante da população é de 12,2%, segundo a pesquisa PNAD Contínua divulgada pelo IBGE em abril.
Uma realidade parecida se repete fora do Brasil. Um levantamento feito pela rede social gay dos Estados Unidos, Hornet, a pedido da Thomson Reuters Foundation, revelou que 30% dos entrevistados, incluindo homens trans, disseram que se sentem inseguros física ou emocionalmente nas próprias casas. A Hornet enviou o questionário para os 30 milhões de usuários em todo o mundo, com 18% das respostas provenientes do Brasil, outros 10% da França e da Rússia, respectivamente, e 9% da Turquia. Muitos disseram que os bloqueios afetaram a saúde mental, com 72% experimentando ansiedade desde o início da pandemia e 24% se sentindo muito solitário.
Desamparo
Na região da Grande Florianópolis, a Associação em Defesa dos Direitos Humanos com enfoque na Sexualidade (Adeh) busca dar assistência a essas pessoas e acolhe vítimas de violência. Segundo a coordenadora-geral da organização, Lirous K’yo Fonseca Ávila, a situação de pandemia faz com que a comunidade LGBTI fique ainda mais desamparada. Quem antes buscava um alívio fora de casa, na aula, no trabalho, nos amigos, agora não tem opção senão conviver com seus agressores.
– É uma forma de tortura, uma tortura corretiva. As pessoas acreditam que humilhar, xingar, fazer com que a pessoa se sinta mal, vai mudar a condição dela. É mais fácil que ela cometa suicídio ou vá embora de casa – explica Lirous.
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Tirar a própria vida foi uma ideia que passou pela cabeça de Luiza*, 26 anos, durante esse período de isolamento. Ela é assistente fiscal e namora com uma mulher há mais de um ano. Luiza mora na mesma casa que a mãe em Florianópolis e convive também com os avós, que vivem na residência ao lado. No início da quarentena, decidiu junto com a namorada não manter contato presencial, acreditando que o isolamento não duraria por muito tempo. No entanto, quando perceberam que a situação se estenderia, as duas decidiram voltar a se ver, mesmo que apenas nos finais de semana.
– Minha família surtou, falaram que eu seria responsável por qualquer coisa que acontecesse com eles, que não tenho nada que namorar, sendo que eles mesmos não estavam respeitando a quarentena. Já namoramos há mais de um ano, estamos noivas, porém, ela nem sequer conhece minha mãe, pois ela não aceita de jeito nenhum.
Assim como Noah, o local de refúgio de Luiza em casa é o quarto, trabalhando, vendo filmes, lendo. Ela entende que enfrentar e expôr a situação é a melhor saída, o que a fez procurar ajuda psicológica.
– Estava a ponto de dar um fim a minha vida, pois não aguentava mais estar no mesmo ambiente que minha família, não aguentava mais estar fora da rotina anterior ao coronavírus. Hoje me sinto um pouco melhor, mas cada dia é uma luta ainda.
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*Luiza é um nome fictício, criado para preservar a identidade da entrevistada, que preferiu não se identificar.
Para o momento, paciência é a recomendação
Já que sair de casa não é uma opção, e os conflitos podem se agravar e evoluir rapidamente em um ambiente em que o diálogo é negado, o melhor a se fazer é agir com cautela. O conselho de Lirous K’yo Fonseca Ávila para quem vive essa tensão com a família é ter paciência.
– Deve ser o mais simples possível. Cada um no próprio canto e esperar passar a pandemia. Esse é um dos conselhos que a gente costuma dar. Se os familiares soubessem a quantidade de LGBTs que tem coragem e vontade de sair de casa eles não fariam essas agressões – diz.
Ter mais calma para lidar com as adversidades foi um dos aprendizados adquiridos por Paulo Maehler Junior durante esse período. A pandemia e as dificuldades financeiras levaram o jovem gay de 24 anos a voltar a morar com os pais e o irmão, em uma cidade no interior do Rio Grande do Sul. Os cenários de liberdade e espontaneidade fora de casa é o que faz mais falta para o estudante de engenharia da computação. O ambiente familiar, segundo ele, é extremamente conservador. Apesar disso, ele se diz um privilegiado já que, mesmo com opiniões diferentes em certos momentos, sente segurança para conversar, principalmente com a mãe e o irmão.
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– Posso dizer que minha família me ama, o único porém é que eles ainda não me apoiam e isso se entrelaça com minha orientação sexual no momento que a minha mãe fala que eu não poderia trazer um namorado pra casa, por consideração ao meu pai. Acho que se pudesse ter o apoio deles seria ótimo – comenta.

Uma das atividades preferidas de Paulo durante o isolamento é jogar. Além dos games, ele usa o quarto como espaço de trabalho, estudo e leitura. Ele descreve o isolamento como transformador.
– Tive que me adaptar a bastante coisas ao mesmo tempo. Com essas situações de quarentena e de família acabei me transformando em alguém que compreende as pessoas e tem mais calma com o próximo. Precisei perceber que as situações não são sempre oito ou 80. Às vezes, o coração fica apertado de saudades da nossa família de escolha. Mas vai chegar o dia em que todo mundo vai se reencontrar novamente e aquele abraço vai explodir de tão bom.
Apesar de se sentir sem rumo com a privação da convivência entre a comunidade, Noah Caetano Fagundes acredita que é possível superar o momento com resiliência.
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– Pode ser que nunca aconteça, mas pode ser que os nossos familiares nos compreendam melhor com o passar do tempo. Às vezes é difícil, mas a paciência é uma das chaves fundamentais. A gente precisa parar de se cobrar por não nos darmos bem com os familiares por conta da não aceitação. Muitos os amam mesmo não tendo uma convivência legal, outros não amam e não é errado não amar quem nos machuca! Aceitemos os nossos sentimentos, nossos limites. A culpa machuca muito o psicológico, afinal, não temos culpa por nossas orientações sexuais ou identidades de gênero… Se acolha e busque acolhimento!
Acolhimento e atendimento à população LGBTI
Associação em Defesa dos Direitos Humanos com enfoque na Sexualidade (Adeh) foi criada em 1993 por travestis e transexuais. Além do acolhimento a vítimas de violência, a associação também trabalha com diversos outros serviços voltados a gênero e sexualidade, como atendimento psicológico, jurídico e social gratuitos, além de outras atividades paralelas. São atendidos em torno de 70 casos por mês. Desses, a maioria é de violência física e psicológica.
Entretanto, a perda do espaço físico no final de 2019 dificultou o trabalho da associação. Uma sala foi cedida para a Adeh em 2013 pelo governo do Estado. O acordo era de que a associação pagaria o condomínio, que na época custava em torno de R$ 350. No entanto, de acordo com a coordenadora, o custo supervalorizou e, nos últimos meses chegou a R$ 1.500, o que fez com que a Adeh não conseguisse cumprir com os pagamentos.
– Com o fechamento da sala os nossos atendimentos reduziram e reduzir esse número significa dar menos assistência para a população que procurava a instituição. Hoje conseguimos monitorar um número menor de pessoas que sofrem violência. Não temos mais um espaço físico e não temos mais como se comunicar com as pessoas, com os LGBTs que são da periferia e que buscavam a instituição como uma forma de refúgio – conta Lirous.
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Mesmo com as dificuldades a rede de apoio se mantém. Quem precisar de ajuda pode entrar em contato pelo telefone (48) 99817-2330, ou pelas redes sociais da @adehonline. Aqueles que tiverem interesse, podem fazer doações por meio de financiamento coletivo no site apoia.se/lgbt.