Dizer que a pandemia de coronavírus afetou a saúde mental de milhões de pessoas em todo o mundo não é novidade. O medo da contaminação, a perda de familiares ou pessoas queridas, o isolamento social, a interrupção ou mudança radical de atividades cotidianas, a eventual piora nas condições financeiras – tudo isso levou a um aumento no número de casos de depressão e ansiedade, como já mostraram estudos realizados em diversos países.
Continua depois da publicidade
> Saiba como receber notícias do NSC Total no WhatsApp
Agora, porém, uma nova pesquisa nacional avalia os impactos na saúde mental das mudanças envolvendo uma área bastante específica: a realização de atividades de entretenimento e o consumo de conteúdos culturais. O estudo também avalia as alterações causadas ou aceleradas pela pandemia nas maneiras como os brasileiros consomem cultura.
Das atividades culturais que costumavam ser realizadas antes da pandemia, 67% dos entrevistados, por exemplo, relatam sentir mais falta de ir ao cinema. 32% sentem falta, sobretudo, de assistir apresentações artísticas (como shows, dança e teatro); 21%, de frequentar bibliotecas; 20%, de ter acesso a atrações infantis; 17%, de visitar centros culturais; 15%, de frequentar exposições e museus.
Continua depois da publicidade
> Violência invisível: o que é violência psicológica – e como evitar ser vítima ou agressor
Entre os participantes, 42% relatam sentir falta do entretenimento e da diversão associados à realização de atividades culturais; 41%, da interação com outras pessoas; 24%, de encontrar os amigos durante esse tipo de atividade; 23%, de ter momentos de lazer com a família; e 9%, de ampliar conhecimentos e conhecer coisas novas. 6%, ainda, associam a realização de atividades culturais à manutenção do equilíbrio emocional.

Uma observação importante: as porcentagens de alguns dos tópicos da pesquisa resultam em mais de 100% porque, em várias perguntas, os entrevistados podiam escolher mais de uma resposta. Na pergunta sobre qual é a atividade da qual os participantes mais sentiram falta durante a pandemia, por exemplo, os entrevistados podiam selecionar três opções: o número indicado no resultado de cada uma é a soma das porcentagens dos que escolheram aquela atividade específica em primeiro, segundo e terceiro lugar.
A pesquisa foi conduzida pelos institutos Itaú Cultural e Datafolha, e entrevistou 2276 homens e mulheres de todas as regiões do Brasil, com idades entre 16 e 65 anos, integrantes de todas as classes econômicas. As entrevistas foram realizadas entre os dias 10 de maio e 9 de junho de 2021. 16% do total, ou seja, 236 pessoas, moram na região Sul do país.
– Ir ao cinema, a um show, assistir uma apresentação de dança ou teatro, tudo isso são momentos de autocuidado – comenta a psicóloga Alessandra Fischer, que atua no Hospital Santa Luzia, em Ponte Serrada, no Oeste de Santa Catarina; e é co-líder da organização Hacking Health, que busca criar soluções para problemas de saúde por meio do uso de tecnologias emergentes. – É um momento seu, de aproveitar algo de que você gosta, na companhia de pessoas de quem você gosta. Isso traz uma sensação muito boa de bem-estar.
Continua depois da publicidade
– Também há a falta da interação com outras pessoas – ela prossegue. – Estar com outras pessoas, trocar ideias a respeito da atividade que estamos realizando, da apresentação que estamos vendo, do filme que estamos assistindo, é parte essencial da atividade cultural. A falta desses espaços causa um vazio muito grande. E isso, por sua vez, causa uma sensação de tristeza: as pessoas se sentem mais sozinhas, mais melancólicas, mais desanimadas.
> FAM divulga filmes selecionados para a edição de 2021
Migração para o online
Com a impossibilidade de realizar presencialmente as atividades culturais às quais estavam acostumadas, muitas pessoas procuraram opções online: a pesquisa Itaú Cultural/Datafolha mostra que, das mais de duas mil pessoas entrevistadas, 57% passaram a se interessar mais por atividades culturais virtuais desde o início da pandemia. 72% delas, ainda, disseram que a disponibilização de conteúdo cultural online possibilitou o acesso a atividades de que, de outra forma, elas não poderiam participar – mesmo antes da pandemia.


Ouvir música e assistir a filmes e séries foram as duas atividades que tiveram maior crescimento em comparação com 2020: o consumo de música online aumentou de 74% para 79%; o de séries e filmes, de 68% para 75%. Jogos online, cursos livres, apresentações artísticas, leitura de livros digitais e consumo de podcasts são atividades relatadas por cerca de quatro em cada dez entrevistados. Em comparação com 2020, só houve queda no acesso a webinars e exposições e museus virtuais – para todas as demais atividades, a tendência é de crescimento.

O consumo de conteúdo cultural online ao longo da pandemia foi visto como positivo por boa parte dos entrevistados: 44% afirmaram que as atividades virtuais melhoraram sua qualidade de vida nesse período; 48% acham que elas diminuíram o stress e a ansiedade; 49%, que elas diminuíram a sensação de solidão; e 51%, que elas diminuíram a sensação de tristeza. Os participantes também citaram algumas vantagens da modalidade online: comodidade, flexibilidade de horários, segurança, economia, evitar deslocamentos.
Continua depois da publicidade
Andrei Longen, 35 anos, jornalista, morador de São José, é um exemplo de frequentador assíduo de cinema – ou pelo menos era, antes da pandemia: ele conta que ele e a esposa costumavam ir ao cinema até quatro vezes por mês.
– Deixamos de frequentar e ainda hoje não voltamos, por conta da insegurança e pelos níveis de infecção e mortes por covid-19 ainda estarem bastante altos – relata. – Temos acesso a plataformas de streaming, o que ajuda bastante a distrair com filmes, séries, documentarios, reality shows, playlists de músicas pra trabalhar, para lazer. Acho que nos adaptamos bem às atividades online. Participamos de aniversários, encontros de amigos e até do curso de batismo do nosso afilhado.
> Charlie Watts, baterista dos Rolling Stones, vai ficar de fora da nova turnê da banda
– As pessoas se viram em casa e começaram a buscar outras formas de interagir com o mundo – diz a psicóloga Alessandra Fischer. – No início da pandemia houve uma grande oferta de lives, de apresentações artísticas online. Foi uma coisa boa; uma forma de as pessoas se entreterem com algo de que gostam e fugirem momentaneamente da enxurrada de notícias ruins que estávamos recebendo todos os dias. Mas, quando a pessoa está acostumada a frequentar presencialmente os eventos, as atividades, ela sente falta do ambiente. Pense numa pessoa que gosta muito de ir ao cinema: ela pode até assistir um filme na Netflix, mas certamente não é a mesma coisa. A ida ao cinema é um ritual diferente.
– Não acho que o streaming substitui a experiência do cinema como um todo, mas é uma excelente alternativa levando em conta segurança, saúde, cuidados, comodidade, preços, horários – pondera Andrei. – O cinema tem o diferencial da qualidade do som e da tela grande, além da experiência de ver um blockbuster muito esperado com outras pessoas tão empolgadas quanto.
Continua depois da publicidade
Não à toa, para todas as atividades, a maioria dos entrevistados escolheria a realização da atividade presencial, caso os dois formatos fossem oferecidos: no caso de apresentações musicais, por exemplo, 62% preferem a versão presencial; para apresentações de teatro, circo ou dança, 64%; espetáculos infantis, 64%; exposições e museus, 63%. Entre os principais motivos citados para justificar a escolha estão a “maior emoção” de assistir presencialmente; a melhor qualidade de vídeo e som; e a vontade de “sair um pouco da frente do computador”.

– A parte cultural, de entretenimento, tem um papel importantíssimo na defesa das nossas emoções, dos nosso sentimentos – destaca Alessandra. – É muito importante que as pessoas busquem formas de se divertir, de se entreter, mesmo que online, ou de forma restrita, para dar continuidade a essas atividades e se sentir interagindo mais com o mundo.
> Brasil encerra Olimpíadas de Tóquio com melhor posição histórica no quadro de medalhas
O poder da cultura e do lazer na proteção da saúde mental é tão grande que a arte é até mesmo usada como terapia, por meio das chamadas PICs, ou práticas integrativas complementares.
– A arte é um veículo de comunicação para os pacientes que apresentam algum transtorno mental – a psicóloga explica. – Por meio dela eles conseguem dar voz às suas dores e seus conflitos. Com a reforma psiquiátrica, foram se abrindo novas possibilidades de tratamento, mais humanizadas. Fazemos uso da pintura, da música, da dança, do teatro. As pessoas se expressam, colocam seus sentimentos nisso, e nós reconstruímos esses sentimentos por meio da arte. Existem muitos estudos que comprovam que o uso de arteterapia trabalha a criatividade, a memória, a concentração; diminui o stress e aumenta a sensação de bem-estar.
Continua depois da publicidade
Andrei Longen diz que ele e a esposa só pretendem voltar às atividades presenciais quando a maior parte da população estiver vacinada, e a pandemia, mais controlada. Ele diz que se considera uma pessoa caseira, e que se distrai e se diverte com facilidade com atividades como filmes, livros e games – mas que se surpreendeu ao se pegar sentindo falta de simplesmente sair de casa.
– Eu nunca imaginei, por exemplo, que um dia iria sentir falta de sair de casa pra ir à academia – comenta. – Ou de simplesmente passear num shopping ou almoçar em algum restaurante. Mas senti falta principalmente de estar com a família.
Parte de um cenário mais amplo
Os efeitos benéficos das atividades culturais sobre a saúde mental são um dado importante, visto que 36% dos entrevistados na pesquisa relataram que, nos últimos 12 meses, pelo menos morador da casa onde vivem teve algum tipo de problema de saúde mental. Desses, 63% procuraram tratamento. Na região Sul, a incidência de domicílios onde houve pelo menos um morador com algum problema de saúde mental nos últimos 12 meses é ainda é maior, sendo relatada por 43% dos entrevistados.
Continua depois da publicidade

– Com a pandemia, a gente percebeu que aqueles casos que já precisavam de algum tipo de tratamento tiveram os sintomas intensificados, e aí as pessoas se viram obrigadas a procurar ajuda – relata a psicóloga Alessandra Fischer. – Também surgiram casos leves a moderados por conta dessa mudança repentina: em março de 2020 as coisas mudaram de um dia para o outro, então foi bem difícil para as pessoas se acostumarem. As famílias precisaram se adaptar em 24 horas. Como a gente se organiza internamente para essa nova realidade? Como cada um lidou com as suas emoções nesse momento?
– Também houve uma piora entre pacientes que já faziam tratamento para transtornos mais graves, como depressões severas e dependências químicas – ela continua. – Vários serviços ficaram fechados por um tempo, e essas pessoas ficaram desassistidas. Muitos pacientes que tiveram piora em seus quadros precisaram ser internados. No hospital, nós recebemos muitos pacientes em casos de recaídas de uso de drogas e de álcool, porque o consumo aumentou na pandemia.
O jornalista Andrei Longen conta que, de fato, ao longo da pandemia, sentiu sua ansiedade ficar um pouco mais severa.
– Tive duas crises de choro em duas semanas distintas, aparentemente sem motivo – diz. – Acredito que tenha sido uma mistura de estar assustado com os números de infecções e mortes, pensamentos negativos em relacao ao trabalho, e o afastamento das pessoas da família.
Continua depois da publicidade
> Novela Nos Tempos do Imperador dá continuidade à trama de Novo Mundo
Alessandra compara as amoções vividas ao longo da pandemia com “vários tipos de luto”: muitas pessoas passaram pela perda não só de amigos e familiares, mas também de empregos, poder aquisitivo, liberdades individuais.
– Cada pessoa lida de forma diferente com o luto; e algumas precisam de um apoio maior nesse momento – ela comenta. – Até mesmo a maneira de fazer velórios foi afetada durante a pandemia; e na nossa cultura nós valorizamos muito esse momento de despedida, de encerramento. Não poder se despedir satisfatoriamente também dificulta o processo do luto. E falar sobre saúde mental sempre foi um tabu. As pessoas ainda têm muita dificuldade de entender quando o problema realmente é algo que exige tratamento ou ajuda.
Além das atividades culturais e de lazer, a psicóloga destaca outra arma na prevenção de diversos problemas de saúde mental: a atividade física.
– A atividade física também é muito benéfica, porque ativa vários neurotransmissores que contribuem com a sensação de bem-estar, diminuindo o stress e a ansiedade – relata. – Muitas pessoas deixaram de ir à academia e mesmo de fazer exercícios ao ar livre nesse período, ficando trancadas em casa.
Continua depois da publicidade
– Seja como for – ela finaliza, – é essencial incluir na rotina coisas que nos deem prazer: ler um livro, assistir um filme, visitar um museu, interagir com amigos, dar uma caminhada. Tudo isso alivia os sintomas de stress, de ansiedade e depressão.
Leia também:
> 50 anos de O Exorcista serão marcados por nova trilogia
> Love For Sale, nova parceria de Tony Bennett e Lady Gaga, ganha data de lançamento