* Reportagem de Anderson Aires, da Zero Hora, com colaboração de Caroline Stinghen, do Diário Catarinense

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Já está valendo, desde o dia 6 de junho deste ano, a nova lei que altera o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas. Sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro, as principais mudanças giram em torno de ações mais rígidas no combate ao tráfico; reforça a atuação de comunidades terapêuticas; e talvez, a mais polêmica, autoriza a internação involuntária de usuários de drogas.

Para a internação sem consentimento, há uma série de regras. O próprio ministro da Cidadania, Osmar Terra, e autor da proposta, explicou que a internação só ocorrerá em “casos críticos”. Ela terá de ser solicitada por um familiar do dependente químico e autorizada por um médico. A internação só ocorrerá em unidades de saúde ou em hospitais gerais.

— Acreditamos que estas medidas representam uma evolução. Elas vão precisar ser avaliadas progressivamente para ver se cumprem sua função. Mas o que é importante ressaltar que a internação é uma situação extrema — explicou a presidente da Associação Catarinense de Psiquiatria, Lilian Schwanz Lucas. A entidade de Santa Catarina segue a posição da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e do Conselho Federal de Medicina.

Para deixar mais claro a situação da internação, ela pode ocorrer quando o dependente químico não tiver mais condições de se auto proteger, por exemplo, ou quando estiver em situação de rua, sem vínculos com a família, ou quando a dependência pode afetar a capacidade de decisão.

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— Para pais com filhos dependentes químicos adolescentes, isso é um problema imenso. Ele acaba ficando sem saída. Dependência é uma situação de saúde mental — complementa a doutora Lilian.

Para não haver abusos, se colocou um limite máximo para internação, de 90 dias. Mas o ideal é que seja mais curto, o período mínimo para que haja a desintoxicação. Para alguns especialistas, um dos pontos polêmicos é o depois da internação. Como o usuário será assistido? A internação via SUS busca tratar a situação grave, e que após a internação, o paciente possa procurar comunidades terapêuticas ou outras redes de apoio.

Opiniões divergentes

Alguns especialistas acreditam que a atualização na lei seja, na verdade, um retrocesso. Eles se apoiam no argumento de que esse tipo de ação foca na abstinência e não pensa na diminuição dos danos. Outros profissionais entendem que esse método, usado de maneira pontual, é necessário em casos mais graves, nos quais o paciente não tem capacidade de tomar decisões.

Por meio de nota ao jornal Zero Hora, a diretora-executiva da Anistia Internacional, Jurema Werneck, diz que a nova lei "adota uma abordagem punitiva e proibicionista, ao invés de medidas que priorizem a redução de danos, o enfoque na saúde pública e nos direitos humanos".

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— Essa decisão abre espaço para violações de direitos, como práticas de tortura, privação de liberdade e tratamentos cruéis, sem consentimento dos pacientes — diz no comunicado.

A psiquiatra Ana Cecilia Marques, coordenadora do Conselho Consultivo da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas (ABEAD), defende que a modificação na lei é um avanço, pois deixa mais claro os pontos que tratam sobre combate à dependência química no Brasil. Em relação à internação involuntária, a psiquiatra entende que a norma cria critérios para evitar o uso generalizado do mecanismo. A profissional afirma que esse tipo de medida é minoria e ocorre em casos mais graves.

— Não tende a aumentar (o número de internações), porque quem interna é o médico. Ele que autoriza. Não é a família. A família pode levar até o médico, que vai decidir se aquele indivíduo tem risco de morte, se precisa dessa proteção integral. Se vai ficar internado uma semana, 15 dias ou 90 dias.

Leitos psiquiátricos

A medida reacende o debate sobre a estrutura existente e a ideal para receber este tipo de paciente no Sistema Único de Saúde (SUS). O Ministério da Saúde informou que o Brasil tem 21,7 mil leitos psiquiátricos — 5.876 em hospitais gerais e 15.851 em hospitais psiquiátricos. No entanto, esses leitos não são exclusivos para esse público, pois podem ser destinados a pessoas que sofrem de transtornos mentais. Em 2017, o Conselho Federal de Medicina (CFM) divulgou pesquisa sobre redução no número de leitos psiquiátricos na rede pública, destacando que o país contava com 40,9 mil vagas em 2005. O número atual de postos é 46,9% menor do que o registrado 14 anos atrás.

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Além de vagas específicas para dependentes químicos em hospitais gerais ou especializados do SUS, o ministério informa que existem 732 "leitos de retaguarda" em unidades do Centro de Atenção Psicossocial (Caps) — o que totaliza 22,4 mil leitos psiquiátricos que podem ser destinados a esse tipo de paciente.

A psiquiatra Carla Bicca, vice-coordenadora da Comissão de Dependência Química da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), avalia que a estrutura atual do país para atender os pacientes psiquiátricos é deficitária. A profissional destaca que o Brasil sofreu com cortes significativos nos leitos para pessoas com doenças mentais nos últimos anos.

— Nós não temos estruturas hoje no país. Tivemos uma diminuição importante no número de vagas de internação na psiquiatria. Junto disso, as vagas que eram prioritariamente fechadas eram as de dependência química. Então, temos hoje muito mais estrutura para saúde mental no geral do que para dependência química — pontua.

Leitos em Santa Catarina

De acordo com a área de Saúde Mental da Secretaria de Estado de Santa Catarina (SES), o Estado possui hoje 381 leitos para pacientes da psiquiatria em hospitais gerais, espalhados em todas as regiões de Santa Catarina. Isso significa que os pacientes com dependência química não são os únicos beneficiados com os leitos. Pelo parâmetro mínimo do ministério da Saúde, o Estado teria que disponibilizar ao menos 566 leitos em hospitais gerais. Na manhã desta terça-feira (25), profissionais da SES estavam inclusive em reunião para debater o assunto.

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O único hospital especializado é o Instituto de Psiquiatria, localizado em São José, na Grande Florianópolis, de responsabilidade do Governo do Estado, e que conta com 160 leitos. Hoje não haveria possibilidade de ampliação da unidade, de acordo com a SES.

Outros dez leitos são disponibilizados por unidades de CAPS AD, sendo sete em Joinville e três em Chapecó. As informações com endereços das unidades você pode encontrar na aba de Saúde Mental, no site da Secretaria de Saúde.

Resumão: entenda as principais mudanças com a nova lei de política nacional das drogas

Internação involuntária

Como era

A lei anterior não previa critérios específicos e claros para internação involuntária. Internações compulsórias, que são realizadas por meio de decisões judiciais, eram usadas como alternativas.

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Como fica

A nova lei especifica a distinção entre dois tipos de internação. Conforme o texto, a internação voluntária deverá ocorrer após declaração escrita da pessoa solicitante que escolheu esse tipo tratamento, que deverá ser encerrado por "determinação do médico responsável ou por solicitação escrita da pessoa que deseja interromper o tratamento".

– A internação involuntária, sem o consentimento do paciente, poderá ocorrer a pedido de familiar ou responsável legal. Na ausência desses, poderá ser solicitada por servidor público da área de saúde, da assistência social ou dos órgãos públicos integrantes do Sisnad, exceto servidores da área de segurança pública.

– A norma prevê que a internação de dependentes químicos deve ocorrer em unidades de saúde ou hospitais gerais. Esses estabelecimentos precisam contar com equipes multidisciplinares. A medida terá de ser obrigatoriamente autorizada por médico registrado no Conselho Regional de Medicina (CRM) do Estado.

– A internação involuntária poderá ocorrer no prazo máximo de 90 dias.

Comunidades terapêuticas

Como era

Esse tipo de estabelecimento privado funciona como centro de reabilitação com diretrizes baseadas na religião, abstinência e trabalho e não responde à legislação específica. O serviço é realizado em regime residencial, temporário e apenas voluntário.

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Como fica

– As comunidades terapêuticas são incorporadas ao Sisnad. Esses locais recebem dependentes químicos, mas não se consideram como entidades sociais e nem de saúde. A lei atual estabelece alguns critérios para o acolhimento de pacientes, como avaliação médica prévia, elaboração de plano individual de atendimento e proibição de isolamento físico do usuário ou dependente de drogas.

– A adesão e a permanência segue sendo voluntária nesse tipo de estabelecimento. Bolsonaro fixou a necessidade de avaliação médica para adesão, que havia sido dispensada no texto original.

– Ao contrário de hospitais gerais e unidades de saúde, comunidades terapêuticas não podem ser usadas como locais de internação.

O que foi vetado do projeto original enviado ao Congresso Nacional

Quando sancionou a nova lei, o presidente Jair Bolsonaro barrou alguns trechos do texto original. Entre eles estão pontos que permitiam que:

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– Pessoas que não são médicos avaliassem o risco de morte de um dependente, para que o acolhimento pudesse ser feito de imediato nas comunidades terapêuticas;

– Fosse dada prioridade absoluta no SUS para as pessoas que passam por atendimento em comunidades terapêuticas;

– A Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad) definisse as regras de funcionamento das comunidades terapêuticas;

– As comunidades não fossem caracterizadas como equipamentos de saúde.