O Diário Catarinense adianta o editorial que publicará no próximo domingo para que os leitores possam manifestar concordância ou discordância em relação aos argumentos apresentados. Participações enviadas até as 19h de sexta-feira serão selecionados para publicação na edição impressa. Ao deixar comentário, informe nome e cidade.
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URBANIDADE À FORÇA
O Brasil é um país que cria leis para obrigar o cumprimento de outras leis. A constatação da historiadora fluminense Mary del Priore, em recente entrevista, resume bem o paradoxo existente entre o país real e o país legal. No primeiro, estimuladas por séculos de transgressões, jeitinhos e impunidades, as pessoas descumprem normas elementares de convivência – furam filas, jogam lixo no chão, ouvem música em alto volume, não recolhem o cocô do cachorro, desrespeitam regras de trânsito, tentam levar vantagem em tudo. No segundo, legisladores de todas as instâncias federativas elaboram leis – algumas verdadeiramente absurdas – com a intenção de implantar urbanidade à força. Muitas delas são simplesmente ignoradas pelos cidadãos.
Assim tem sido neste país em que a cultura, os interesses, as práticas sociais e as questões jurídicas se revelam muitas vezes incompatíveis. Existe lei para tudo, mas raramente ela é acompanhada de vontade política, de fiscalização e de força coercitiva para que seja efetivamente aplicada. É muito fácil atribuir todas as mazelas de comportamento à falta de educação do povo. Se só tivéssemos cidadãos educados e conscientes de seus deveres, obviamente que não precisaríamos de leis. Mas a realidade é outra: no seu conjunto, a população brasileira abrange bons e maus cidadãos, honestos e desonestos, responsáveis e irresponsáveis, obedientes e infratores. Não se pode esperar que apenas os íntegros tenham protagonismo nos fatos.
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Temos que investir cada vez mais em educação, é verdade, tanto na formal quanto na familiar. Mas essa providência, que tende a levar décadas até se transformar numa cultura satisfatória de convivência civilizada, não deve impedir uma revisão de conduta permanente do que continuamos fazendo agora. Mesmo que nos falte uma base sólida, talvez possamos manter de pé o edifício da civilidade evitando a sobrecarga de maus exemplos no andar de cima. Vale para governantes, para legisladores, para representantes de todos os poderes e também para servidores públicos de todos os níveis.
E inclui-se aí o excesso de leis inúteis e inaplicáveis que nossos legisladores continuam produzindo por oportunismo ou mesmo por pura demagogia. Neste contexto, embora seja igualmente fantasioso, conforta pensar que todo esse emaranhado de códigos e regramentos poderia ser substituído pela Constituição Federal sugerida pelo também historiador Capistrano de Abreu, com apenas um artigo e um parágrafo: Art. 1º Todo brasileiro deve ter vergonha na cara. § único: Revogam-se as disposições em contrário.