Era início da manhã do dia 12 de junho de 2021, quando Marcieli enviou uma mensagem à irmã, convidando ela e a sobrinha, Evelyn Vitória Modrok, de cinco anos, para passarem o final de semana em uma cidade próxima de onde moravam. Há dois meses sem ver a sobrinha, a saudade do xodó da família era enorme. A pergunta, no entanto, nunca foi respondida.
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O motivo ela descobriu horas mais tarde, nas redes sociais: a menina foi estrangulada pelo próprio pai, que foi preso em flagrante. Uma dor que, mais de um ano depois, ainda causa revolta à família que vive em Jaraguá do Sul, no Norte de Santa Catarina.
— Até hoje eu não consigo acreditar. Não é verdade — desabafa Marcieli.
Evelyn faz parte de uma estatística que tem preocupado autoridades e especialistas no Estado: em sete anos, 60 crianças foram assassinadas — é como se, a cada 42 dias, uma pessoa entre zero e 12 anos fosse morta. Só em 2022, foram sete vítimas.
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Um crime revoltante e que se tornou hediondo no país com a aprovação da Lei 14.344 de 2022 — batizada de Lei Henry Borel, em homenagem ao menino de quatro anos que morreu após ser espancado no Rio de Janeiro. O padrasto e a mãe dele irão à júri popular pelo crime.
A mudança na legislação e o alto número de casos trouxeram à tona a importância da prevenção da violência doméstica contra crianças e adolescentes. Um crime que, muitas vezes, fica silenciado dentro dos lares e que esbarra em dificuldades que vão desde a denúncia até a resolução na Justiça. São ameaças e agressões que poderiam ser evitadas com a rede de proteção ideal.
Maioria das vítimas tinha menos de dois anos
Segundo dados do Colegiado Superior de Segurança Pública e Perícia Oficial de Santa Catarina, entre os anos de 2016 e 2022, 60 crianças foram assassinadas. Dessas, 25 tinham entre zero e um ano de idade — ou seja, quase 41% do total de vítimas.
Dentro do período, o ano com o maior número de vítimas é 2019, onde 13 crianças morreram. Já a região com a maior quantidade de casos é o Oeste, onde, em sete anos, o número de assassinatos chegou a 16.
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Os dados mostram ainda, de forma parcial, as motivações das mortes: crime passional, desavença, infanticídio (veja mais no infográfico abaixo). No entanto, 44,82% dos crimes aparecem sem especificação de causa, no local aparece a opção “outra” — segundo a pasta, são as situações onde não há filtro especificado dentro do sistema estadual, como atropelamento com a intenção de matar.
Das informações que podem ser analisadas, mortes provocadas por crime passional são maioria, com 20,6% dos casos. Ao todo, foram 12 casos entre 2016 e 2022. Se o recorte levar em conta apenas este ano, das cinco mortes registradas, dois foram classificadas como passionais.
— Infelizmente, a criança tem sido vítima de um crime muitas vezes relacionado ao problema da violência doméstica familiar. Pais que não aceitam o término do relacionamento e descarregam isso na criança. Nós temos casos de feminicídio de crianças nesses últimos anos em que a mãe é a coautora também. Então é uma forma absurda que nós vemos — explica a coordenadora das Delegacias de Proteção à Criança, ao Adolescente, a Mulher e ao Idoso, Patrícia Zimmermann.
Para o advogado e professor no curso de Direito na Univali Fabiano Oldoni, são vários motivos para o aumento na violência:
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— Uma delas pode ser a questão da dificuldade de convivência que surgiu a partir da pandemia? Pode. Pode ser a questão da legitimação do discurso violento? Pode. Nós tivemos um aumento de violência doméstica, do sexo masculino se apresentando mais violento do que antes em decorrência da dificuldade econômica e psicológica. Por isso, tem que ficar bem claro que não vai ser resolvido em um aumento de pena [em caso de condenação]. Isto é mais simbólico e cultural.
Os números também apontam o meio utilizado para cometer o assassinato. Em 26% dos casos, as mortes ocorreram com o uso de arma branca — faca, por exemplo —, enquanto em 21%, o óbito ocorreu após agressões físicas sofridas pela criança.
Em relação à pandemia, o professor explica que, com o distanciamento social, as escolas ficaram fechadas, e as crianças, dentro de casa. Com isso, a fiscalização de possíveis casos de violência ficou fragilizada.
— Quando a criança circula na rua, ela é vista. Por exemplo, se ela vai na padaria comprar um doce com o pai, ela é vista por alguém. Se ela tem uma lesão importante, aquela pessoa vai observar. Se ela vai para um atendimento médico, escola, conversa com vizinhos, essa interação social com todos os meios é como uma forma de proteção. E por que? Porque são raríssimos os casos que a criança chega e por conta própria pede ajuda. Aí que até o momento que ela consegue pedir socorro, já se passou um prazo muito grande — complementa Patrícia.
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A vida de quem perde uma criança para a violência
No caso de Evelyn, o crime foi passional. Ela foi estrangulada pelo pelo pai que alegou não aguentar mais ver a menina sofrendo com o fim do relacionamento entre ele e a mãe dela, segundo a Polícia Civil. O término, de acordo com a mãe, ocorreu após traições e abusos psicológicos.
Na época da morte, a guarda de Evelyn era dividida entre os pais. De acordo com Marcieli, o homem impedia a família de ter contato com a menina.
— Ele sumia, não respondia as mensagens. Íamos até o Conselho [Tutelar] que falava que ia chamar para conversar, mas nunca ia até o local. A minha irmã chegou a mostrar áudios em que ele ameaçava tirar a vida da Evelyn e dizia: “Vocês vão esperar minha filha estar dentro de um caixão para depois acreditarem?” — alega a mulher.

Na noite anterior ao crime, a mãe chegou a visitar a criança, que estaria doente e com febre. O homem chegou a pedir para que ela dormisse lá, mas a mulher preferiu ir para casa. Antes, porém, se despediu da filha, disse que a amava e que voltaria no dia seguinte para fazer o almoço. Porém, o reencontro nunca aconteceu
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— Há datas que é complicado — começa a tia lembrando do quanto a única sobrinha era alegre, inteligente e esperta.
— Quando ela [a Evelyn] soube da minha gravidez, ela ficou tão feliz. Cada dia que eu penso, agora, que ela poderia estar aqui, isso me revolta. Tudo que aconteceu poderia ter sido evitado. Mas por mais que ele continue preso, isso não vai tirar ela de onde está — desabafa Marcieli.
O Diário Catarinense entrou em contato com o Conselho Tutelar de Guaramirim a respeito da alegação da falta de acompanhamento. Em nota, o órgão confirmou a informação de que a família os procurou porque o pai não deixava a mãe ver a criança. Na ocasião, a mulher foi orientada a buscar medida protetiva contra o homem devido às ameaças e, após conversa com ambos, orientou sobre a guarda compartilhada.
Ainda de acordo com o Conselho, devido ao conflito que o casal tinha com o término, a equipe encaminhou o pai e a mãe para o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) que, após acompanhamento, identificou um possível caso de alienação parental “de ambas as partes”. Por conta disso, o caso foi encaminhado ao Ministério Público pedindo uma audiência com os pais.
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Pai que matou filha estrangulada em Guaramirim vai a julgamento
O Conselho diz, ainda, que na quinta-feira anterior à morte de Evelyn, a mãe realmente procurou a equipe, solicitando orientação, porque há 30 dias ela não via a criança. O encaminhamento foi de que a mulher fosse visitar a menina e acionasse a equipe ao chegar no condomínio, para que o Conselho pudesse intervir. Porém, segundo o órgão, isso não ocorreu.
Por fim, a prefeitura alega que não houve omissão por parte dos conselheiros no acompanhamento do caso.
— Infelizmente nós vemos muitos casos em que a criança é usada como cabo de guerra em uma situação mal resolvida e, com isso, temos as situações de alienação parental. Ou seja, aquela mãe que relata uma agressão do pai, daqui a pouco vem o pai com a criança relatando uma agressão com a mãe. Quando nós temos esses problemas e situações de separação mal resolvida, é muito comum ter a criança no meio como se fosse um cabo de guerra. E nesses casos não são poucas as vezes que chamamos os pais para conversar. Porque o casal se separou, mas não são ex-pai e ex-mãe. Mas isso não é fácil — complementa a delegada.
O reú foi condenado a 30 anos de prisão pela prática de homicídio por motivo torpe, com uso de recurso que impossibilitou a defesa da vítima e também por ter sido cometido contra descendente.
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Ainda de acordo com a Justiça, o homem não tinha nenhum outro processo relacionado à violência doméstica, apenas um pedido de medida protetiva feito pela ex-esposa em maio, mas que foi retirado logo após solicitação.
Em relação ao pedido de guarda, o fórum informou que os processos envolvendo o Direito de Família resguardam sigilo judicial.
O DC também entrou em contato com o advogado de defesa do acusado. Em nota, Jeremias Felsky informou que já apelou da decisão e que aguarda o julgamento do recurso por parte do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC).
“Estado precisa chegar nessas crianças antes que elas parem no IML”
A violência contra crianças pode aparecer de maneiras diferentes: dentro de casa, na rua, por meio de chutes ou agressões verbais, durante o dia ou à noite. É um ato muitas vezes silencioso, que não escolhe gênero, etnia ou classe social.
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Mesmo assim é possível prevenir esses casos por meio de alguns sinais, principalmente os físicos, explica a delegada Patrícia Zimmermman:
— Na criança nós temos que observar o local, o tempo e o tipo da lesão. Esses são indicativos de que a criança vem sofrendo violência. Por exemplo, se você tem uma criança que tem um hematoma no braço, de um puxão, ele é diferente de uma pessoa que tem um hematoma na face por um tapa. Então, nós sempre falamos: quando você se depara com uma criança agredida, olha o local da lesão. Por que é importante observar isso? Porque o estado precisa chegar nessas crianças antes que elas parem no IML.
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Mas não são apenas os sinais físicos que podem indicar que algo está errado com aquela criança. A falta de interação social ou até de hábitos que não eram comuns àquela criança podem indicar que ela está sofrendo algum tipo de violência dentro de casa.
A psicóloga e professora da Furb Catarina Gewerh explica que existem dois grupos de sinais: os físicos e os psicológicos. Enquanto o primeiro está nos hematomas, o segundo tem a ver com o comportamento da criança no dia a dia.
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— Por exemplo, ela fica mais paradinha na escola, não roía as unhas e agora fica roendo. Sempre que a criança manifestar um comportamento diferente, vale a pena olhar com cuidado sobre a condição, como estão as coisas — pontua.
Lei Henry Borel
O assassinato de crianças só se tornou crime hediondo neste ano. A Lei 14.344 de 2022 também estabelece uma série de medidas protetivas específicas para crianças e adolescentes que são vítimas de violência doméstica e familiar. O texto também altera o Código Penal e passa a considerar o homicídio contra menor de 14 anos como qualificador. A pena é de 12 a 30 anos de reclusão.
— A mudança é que agora ele é reconhecido como algo de gravidade maior e isso interfere nos benefícios, como um possível livramento condicional. O que é importante deixar claro é que ela [a lei] vem dentro de uma lei maior que é a que traz a implementação dos direitos da criança ao enfrentamento da violência doméstica — explica o advogado e professor de direito da Univali Fabiano Oldoni.
Porém, o especialista salienta que a aprovação da lei não, necessariamente, significa que os crimes contra crianças vão diminuir:
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— Isso vai facilitar o delegado, juiz ou promotor a ter medidas específicas, mais direcionadas para criança ou adolescente. É justamente essa a parte mais importante da alteração. Mas, não é porque tem uma pena maior que vai diminuir o crime.
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Outro documento importante para garantir a proteção de crianças e adolescentes no país é o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Assinado em 1990, a Lei nº 8.069 define uma série de direitos e deveres para meninos e meninas com menos de 18 anos no país. Entre elas está a atuação do Conselho Tutelar.
— Qualquer ação ou omissão que não garanta os direitos básicos, o ECA prevê na forma de suas instituições um tripé para a proteção da infância. Quando um desses autores não garantem a proteção, o Conselho deve ser acionado, o que vai gerar uma série de ações junto à Justiça e à polícia especial, no caso de crimes — explica a doutora em Antropologia Social, psicoterapeuta e psicóloga educacional, Mirella Alves de Britto.
Cada município conta com uma unidade do Conselho Tutelar, que é administrado pelas prefeitura. O principal papel do órgão é fiscalizar: ou seja, após a denúncia, os conselheiros vão até o local, analisam a situação e elaboram um relatório.
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— O Conselho pode receber os pais, aconselhar e encaminhar para serviços oficiais. Por exemplo, tem um pai que tem algum tipo de vício ou tratamento, eles fazem esse acompanhamento da família para proteger a criança — salienta Myriane Gonçalves, gerente de política para crianças, adolescentes e jovens da Diretoria de Direitos Humanos.
A rede de proteção é composta pelo tripé citado por Mirella que inclui sociedade civil, poder público e família. Para esse sistema funcionar, são importantes também políticas públicas que garantam os direitos básicos dos menores.
— Nenhuma instituição sozinha vai conseguir garantir a proteção integral se a rede como um todo não for articulada. Não adianta o Ministério Público, que tem uma função específica, atuar se faltam médicos e psicólogos para atender todas as crianças. É um grande desafio — enfatiza o coordenador do Centro de Apoio Operacional da Infância e Juventude (CIJ) do Ministério Público de Santa Catarina (MPSC), promotor João Luiz de Carvalho Botega.
— Esse estatuto é uma lei jovem, mas já deu tempo de ser implementada. Mas o que vejo, desde o início, que tivemos vários momentos em que a lei pudesse se consolidar, mas um atraso e retrocessos com políticas públicas que tenham enfraquecido. Se eu não tenho vaga na escola, saúde, atendimento aos pais, essas situações podem levar uma violência lá na ponta — complementa a psicóloga Mirella Alves de Brito.
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Denúncia é fundamental
Entre especialistas há um consenso: um bom funcionamento das redes de proteção são essenciais para garantir a proteção de crianças e adolescentes. Mas, para isso, é necessária outra peça chave dessa engrenagem: a denúncia.
— Muitas vezes o vizinho ouve e não quer se meter. Sabe e não quer se envolver. Mas é importante enfatizar que isso é uma responsabilidade de toda a sociedade, principalmente de denunciar. Não precisa ter certeza, basta uma suspeita e denunciar — reforça a gerente de política para crianças, adolescentes e jovens da Diretoria de Direitos Humanos, Myriane Gonçalves.
Além disso, o promotor de Justiça João Luiz de Carvalho Botega salienta que o ato de não denunciar também pode ser considerado crime, ou seja, a pessoa que presenciou uma cena de violência e não fez nada também pode responder judicialmente.
— Tem conhecimento, faça a denúncia, não vai ter risco algum. Nós sabemos que a maioria dos casos acontece dentro da família. Que as autoridades tomem conhecimento dos fatos para responsabilizar o agressor — complementa.
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Como fazer a denúncia?
Em caso de violência contra crianças, denúncias podem ser feitas através dos seguintes canais:
- Disque 100
- Conselho Tutelar municipal
- Polícia Militar: 190
- Disque-denúncia: 181
- Denúncia pelo whatsapp: (48) 98844-0011
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