A fumaça negra e densa que avançou como uma nuvem mortal no interior da boate santa-mariense separou casais, irmãos e grupos de amigos que festejavam juntos na madrugada de domingo. Por um golpe de sorte ou um lance de azar, alguns escaparam com vida, outros morreram. E uniu horas depois, do lado de fora do ginásio onde foram alojados os corpos, parentes e conhecidos das famílias destroçadas no incêndio tentando entender como uma noite de festa virou cenário de horror.

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Irmãos foram separados pelo fogo

Daniel Cechin, 20 anos, estudante de Agronegócio da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), foi à boate para acompanhar o irmão, João. Amigos inseparáveis, ambos moravam na cidade vizinha de Itaara. João escapou. Daniel morreu. A prima Taís Mezeck, 25 anos, começou a suspeitar da tragédia quando seu marido, um médico, foi chamado às pressas para atender os feridos do incêndio em um hospital. Pouco depois, Taís descobriu que a dupla de irmãos havia se dirigido à Kiss na véspera.

– Fizemos ronda nos hospitais, depois soubemos que o Daniel havia morrido. Ele estava no meio do curso na faculdade – lamentou a prima.

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O pai, após a confirmação da morte, voltou para Itaara. Tinha de providenciar o enterro do filho.

Amigos planejavam viajar ao Rio

Carlos Alexandre dos Santos Machado, 26 anos, e o amigo Pedro não eram irmãos, mas era como se fossem. Além de fazer festas juntos, como na virada de sábado para domingo, os camaradas de longa data também fazia planos para viajar. As passagens da próxima aventura já estavam marcadas para um período de férias no Rio de Janeiro, mas a tragédia na danceteria impediu a realização do aguardado passeio. Machado, formado em administração e empregado na empresa do pai, foi um dos primeiros mortos com identidade confirmada.

– Ele era uma pessoa especial, estava sempre preocupado com os outros – lamentou a irmã, Rafaela Santos Machado, 19 anos, estudante.

Até o final da tarde, o nome de Pedro não havia aparecido na listagem oficial de mortos divulgada pelo governo gaúcho.

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Fogo interrompeu aniversário

No meio do caos que se espalhou com as chamas, havia uma festa de aniversário. Evelin Costa Lopes, 20 anos, estava entre as convidadas da comemoração interrompida pela tragédia. A funcionária de uma loja em Santa Maria costumava frequentar a boate, mas desta vez o motivo era especial.

– Pelo que ficamos sabendo, a aniversariante se salvou. Minha irmã não conseguiu – lamentou Andriele Costa Lopes, 26 anos.

Conforme Andriele, a irmã era uma menina alegre e de sorriso constante. Era solteira e não tinha filhos.

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Incêndio vitimou grupo de dança

Além de comemorações, a paixão pela dança era outra das razões pelas quais a boate se encontrava lotada no momento do desastre. Bailar era uma das maiores paixões de Larissa Terres, 22 anos. Por isso, mesmo depois de fazer uma aula de dança de salão, participar de um churrasco com amigas e instrutores da academia onde ensaiava seus passos, ela e pelo menos outras três colegas de bailado resolveram terminar a noite rodopiando uma vez mais. Na primeira lista de vítimas divulgada pelo governo gaúcho, três das alunas da mesma academia já haviam tido a morte confirmada: além de Larissa, morreram Shaiana Antolini e Tanise Lopes Cielo.

– Ela amava dançar. Além disso, era professora de matemática e fazia menos de um ano que havia começado a dar aula em uma escola – lamentou o irmão Luiz Alberto Teixeira, 38 anos.

Até o meio da tarde, o familiar ainda mantinha esperanças de encontrar a irmã internada em um hospital. Pouco depois, porém, a identificação dos corpos confirmou o destino das bailarinas de Santa Maria.

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Casal trabalhava junto na boate

Entre as vítimas, além de clientes em busca de diversão, também estavam funcionários do estabelecimento. Sandra Pacheco Ernesto, 40 anos, trabalhava junto com o marido na boate que se transformou em palco da maior tragédia gaúcha. De acordo com o irmão, Leonel Pacheco, 50 anos, ambos auxiliavam no serviço de segurança do local. A principal razão do trabalho de Sandra era conseguir dinheiro para comprar uma casa e deixar de pagar aluguel. O marido conseguiu escapar do incêndio. Sandra, não.

– O meu cunhado não conseguiu ajudá-la, nem sabia onde ela estava na hora do incêndio. Só viu quando tiraram ela – contou Leonel.

Logo depois de confirmar a morte da irmã, teve de cumprir outra dolorosa tarefa: ligar para os pais em Dom Pedrito, ambos na faixa dos 80 anos, para revelar a morte de Sandra.

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– É a coisa mais difícil que eu já tive de fazer – lamentou.

Adolescente queria ser militar

Muitos dos mortos no incêndio não tiveram a chance de começar a vida profissional. Seguir a vida militar, o que ocorreria nas próximas semanas, seria a realização de um sonho para o adolescente João Renato Chagas de Souza, 18 anos. Antes de se engajar ao Exército, comemorava com amigos os últimos dias de vida civil. Alguns escaparam, outros foram internados, mas Souza jamais conseguiu chegar até a saída da boate.

– Ele era muito tranquilo, foi a essa festa mais por causa dos amigos. E acabou morrendo – lamentou a prima Adriana Torres, 18 anos.

Quem conseguiu sobreviver ao pesadelo, como a técnica de enfermagem Aline Jacobsen, 25 anos, ficará a lembrança gravada a fogo e fumaça. E o que viram pode explicar porque, na loteria de vida e morte em que se transformou a boate gaúcha, apenas alguns viveram:

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– O fogo começou muito rápido. Quem não saiu nos primeiros minutos, não saiu mais.

A tragédia

O incêndio na boate Kiss, no centro de Santa Maria, começou entre 2h e 3h da madrugada de domingo, quando a banda Gurizada Fandangueira, uma das atrações da noite, teria usado efeitos pirotécnicos durante a apresentação. O fogo teria iniciado na espuma do isolamento acústico, no teto da casa noturna.

Sem conseguir sair do estabelecimento, mais de 200 jovens morreram e outros 100 ficaram feridos. Sobreviventes dizem que seguranças pediram comanda para liberar a saída, e portas teriam sido bloqueadas por alguns minutos por funcionários.

A tragédia, que teve repercussão internacional, é considera a maior da história do Rio Grande do Sul e o maior número de mortos nos últimos 50 anos no Brasil.

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Veja onde aconteceu

Imagem: Arte ZH

A boate

Localizada na Rua Andradas, no centro da cidade da Região Central, a boate Kiss costumava sediar festas e shows para o público universitário da região. A casa noturna é distribuída em três ambientes – além da área principal, onde ficava o palco, tinha uma pista de dança e uma área vip. De acordo com o comando da Brigada Militar, a danceteria estava com o plano de prevenção de incêndios vencido desde agosto de 2012.

Clique na imagem abaixo para ver a boate antes e depois do incêndio

A festa

Chamada de “Agromerados”, a festa voltada para estudantes da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) começou às 23h de sábado. O evento era de acadêmicos dos cursos de Agronomia, Medicina Veterinária, Tecnologia de Alimentos, Zootecnia, Tecnologia em Agronegócio e Pedagogia. Segundo informações do site da casa noturna, os ingressos custavam R$ 15 e as atrações eram as bandas “Gurizadas Fandangueira”, “Pimenta e seus Comparsas”, além dos DJs Bolinha, Sandro Cidade e Juliano Paim.

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