Talvez você, gremista fervoroso, acompanhe a cantoria quando os rivais são chamados de macacos. Talvez o leitor colorado faça piadas com a antiga Coligay e com os “gaymistas”.

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Especialistas e membros do Ministério Público não têm dúvida: esse tipo de conduta avaliza episódios de barbárie que chocaram o país nas últimas semanas – em 22 dias, o árbitro gaúcho Márcio Chagas, o cruzeirense Tinga e o santista Arouca foram violentados pelo racismo. Os clubes nada fazem para coibir o preconceito. As federações limitam-se a notas de repúdio. E a lei prevê sanções amenas.

Comparado a um primata por torcedores do Mogi Mirim na quinta-feira, o volante Arouca foi direto ao ponto na nota oficial que lançou nesta sexta:

– A impunidade e a conivência das autoridades com as pessoas que fazem esse tipo de coisa são tão graves quanto os próprios atos.

Pela manhã, o segundo vice-presidente do Esportivo, Vladimir Santos de Oliveira, registrou na polícia uma ocorrência por difamação: conforme ele, não teria sido nas dependências do clube que o árbitro Márcio Chagas encontrou seu carro riscado e coberto de bananas na quarta-feira. Os clubes, diz a doutora em Sociologia do Esporte Heloisa Reis, são condescendentes com o preconceito.

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– São agremiações retrógradas, que só se movimentam com imposição legal. Nunca tive notícia de um clube condenando, com campanhas ou orientações aos sócios, esses cânticos racistas e homofóbicos tão comuns nos estádios.

De acordo com Heloisa, todos os estudos apontam que, para reduzir a violência provocada pelo preconceito, o primeiro passo é atacar expressões ainda consideradas aceitáveis. Nos estádios, segundo o sociólogo Alex Niche Teixeira, do Grupo de Pesquisa Violência e Cidadania da UFRGS, a forma mais eficaz de combatê-las é punindo os clubes com rigor.

Teixeira lembra que, até poucos anos atrás, quando um objeto era arremessado no gramado, nada ocorria com os clubes. O argumento era sempre o mesmo: “Vão prejudicar o time por meia dúzia de gatos pingados?” Mas, quando os clubes passaram a perder mando de campo, os próprios torcedores começaram a coibir os vândalos. É comum, hoje em dia, a torcida apontar o autor do arremesso para dedurá-lo aos dirigentes – só assim o clube se safa da punição.

– Não pode ser tão difícil um clube realizar uma campanha dizendo “não vamos tolerar manifestações racistas” e “você será impedido de entrar no estádio se promover o preconceito”. Ora, se o torcedor souber que aquilo o impedirá de assistir ao seu time, vai ficar bem quieto _ diz a professora Heloisa.

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Com a repercussão do caso Márcio Chagas, a Promotoria do Torcedor do Ministério Público entregou nesta sexta à Federação Gaúcha de Futebol (FGF) uma série de recomendações. O objetivo é que a entidade inclua no regulamento do Gauchão – e das demais competições que organiza – uma série de sanções contra os clubes em casos de racismo ou homofobia. São elas: advertência, multa, jogo sem torcida, perda de pontos, expulsão da competição e rebaixamento.

Na mesma tarde, o procurador do Tribunal de Justiça Desportiva regional, Alberto Franco, encaminhou à corte sua denúncia contra o Esportivo, cujos torcedores humilharam o árbitro. Embora a previsão legal seja de perda de três pontos no campeonato, Franco multiplicou por três a punição. Ou seja, como Márcio Chagas teria sido insultado antes da partida, no intervalo do jogo e após o apito final, o Esportivo perderia nove pontos na tabela. E acabaria rebaixado. O julgamento está marcado para a próxima quinta-feira.

– Queremos que a FGF elabore um plano de ação, para que os torcedores parem de cantar cânticos racistas, sob pena de punição severa aos clubes – afirma o promotor José Francisco Seabra Mendes Júnior.

Em São Paulo, o presidente do Tribunal de Justiça Desportiva, Mauro Marcelo de Lima e Silma, mandou interditar o estádio do Mogi Mirim após os insultos contra Arouca _ a assessoria do órgão afirma que a iniciativa foi do próprio presidente. No Rio Grande do Sul, o comandante da corte local, Roberto Pimentel, disse que só poderia fazer o mesmo caso a procuradoria lhe solicitasse.

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Casos no futebol do Exterior:

Apesar de o texto do 10º dos 11 valores promovidos pela União das Associações Europeias de Futebol, o respeito, anunciar “zero tolerância com o racismo”, as punições impostas pelo Corpo de Controle e Disciplina da entidade à discriminação ainda são brandas. No artigo 14 do Regulamento Disciplinar da Uefa, a perda de pontos e a desclassificação da competição são consideradas apenas na terceira vez em que há um episódio de preconceito.

Fevereiro 2014 – Sem torcida

A Uefa puniu o CSKA Moscou pela segunda vez na mesma edição da Liga dos Campeões, após parte da torcida entoar cantos e exibir símbolos preconceituosos durante o jogo contra o Viktoria Pilsen, pela fase de grupos. Mesmo reincidente, o time russo recebeu apenas uma multa no valor de R$ 164 mil e terá de jogar uma partida com os portões fechados. Eliminado, o CSKA só cumprirá a sanção na próxima competição da entidade

Novembro 2013 – Um setor do estádio fechado

O CSKA Moscou jogou a partida contra o Bayern, pela fase de grupos da Liga dos Campeões, com um setor de arquibancada da Arena Khimki fechado. Um mês antes, a torcida do clube russo insultou o volante marfinense Yaya Touré, do Manchester City, com gritos racistas.

Dezembro 2013 – 10 jogos de suspensão

Em meio à festa pela classificação da Croácia à Copa, em Zagreb, o zagueiro Josip Simunic, com um microfone, incitou a torcida a gritar uma saudação fascista. O croata foi proibido pela Fifa de entrar nas dependências dos estádios por 10 partidas internacionais – punição que o tirou da Copa – e teve de pagar multa de cerca de R$ 80 mil.

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Dezembro 2013 – Fechamento parcial

Olympiacos, da Grécia, e Zenit, da Rússia, foram multados em R$ 100 mil e R$ 130 mil, respectivamente, e tiveram de jogar uma partida com o estádio parcialmente fechado por causa do comportamento racista de parte de seus torcedores em jogos pela Liga dos Campeões.

Setembro 2013 – Menos torcida

Gritos racistas e um cartaz com mensagem discriminatória custaram R$ 15 mil e uma partida com o estádio parcialmente fechado ao Lech Poznan, da Polônia.

Junho 2012 – Multados

As federações da Rússia e da Espanha receberam multas pelo comportamento discriminatório dos seus torcedores em partidas contra República Checa e Itália (insultos direcionados a Balotelli), respectivamente, na Eurocopa de 2012. Os russos pagaram cerca de R$ 77 mil, e os espanhóis, R$ 50 mil.

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