Brasil tem um compromisso firmado com a Organização Internacional do Trabalho para extinguir todas as formas de trabalho infantil até 2020 – e as piores delas, até 2015. Mas o caminho para o cumprimento do acordo esbarra na conivência. A equivocada ideia de que a venda de picolés possa ser educativa ou evitar o envolvimento da criança com o crime faz com que os meninos, seus carrinhos e apitos pareçam invisíveis para a comunidade e mesmo para os órgãos que deveriam lhes garantir proteção.

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Dados do Censo do IBGE de 2010 revelam que nas cidades de Balneário Camboriú, Camboriú e Itajaí, 1.176 crianças e adolescentes de 10 a 14 anos exercem algum tipo de trabalho. Mas os números não refletem nas estatísticas dos conselhos tutelares dos municípios. Com exceção de Camboriú, onde as denúncias de trabalho infantil são relativamente comuns, em Balneário Camboriú e Itajaí quase não há registros de crianças vendendo picolés nas ruas.

– A maioria das pessoas acha que é melhor as crianças estarem trabalhando do que se envolvendo com drogas, e por isso não denuncia. Mas a lei tem de ser cumprida, esses meninos não deveriam andar sob o sol quente, com dinheiro nos bolsos. Eles estão em risco – diz a conselheira tutelar Franciele Leão, de Balneário Camboriú.

Em dois anos, ela atendeu a apenas três denúncias de trabalho infantil na cidade e todas envolviam crianças de Camboriú – embora a equipe de reportagem tenha observado pequenos moradores do Bairro da Barra vendendo picolés por mais de uma vez.

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Situação parecida ocorre em Itajaí, onde o Conselho Tutelar atendeu só uma criança que vendia picolés nos últimos anos. A criança foi encaminhada à rede de proteção e o caso encerrado. Entretanto, apesar de não haver novas denúncias, meninos foram flagrados vendendo picolés em plena Avenida Beira-Rio, a duas quadras da sede do Conselho. Todas disseram morar na área de ocupações irregulares do Bairro Imaruí, onde pelo menos duas sorveterias exploram o trabalho infantil.

Rede de proteção é falha

Crianças que são vítimas de trabalho infantil têm direito a uma rede de proteção. As políticas vão desde transferência direta de renda à família até serviços de convivência e fortalecimento de vínculos, além de acompanhamento familiar. O governo federal mantém ainda o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), que oferece atividades de contraturno para meninos e meninas em situação de risco e expostos à labuta precoce.

Em Itajaí e Camboriú, há 195 crianças inscritas no programa. Secretário de Desenvolvimento e Assistência Social de Camboriú, John Lennon Theodoro reconhece que muitas crianças expostas ao trabalho e aos riscos da rua ainda não são atendidas pelo Peti e, por isso, reforça a necessidade da comunidade denunciar.

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– Este programa (Peti) é nossa menina dos olhos. Trabalha com arte e cultura para fortalecer os vínculos dessas crianças, que se mostram sempre muito talentosas – explica Theodoro.

As ações do Peti, porém, não existem em Balneário Camboriú. Isso porque, de acordo com os dados oficiais, não há crianças e adolescentes em situação vulnerável. O secretário de Inclusão Social, Luiz Maraschin, se disse surpreso ao saber, pela reportagem, que há meninos vendendo picolés nas ruas da Barra:

– Não tínhamos conhecimento disso.

Maraschin diz que pretende identificar as crianças para encaminhá-las a serviços de proteção.

Para a promotora Helen Sanches, do Centro de Apoio à Infância do Ministério Público de Santa Catarina, o problema é que as políticas de proteção são insuficientes para extinguir o trabalho infantil. Auditora do Ministério do Trabalho e coordenadora da Fiscalização de Combate ao Trabalho Infantil na Superintendência Regional do Trabalho em SC, Inge Ranck vai além:

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– Muitos fatores nos impedem de trabalhar, dentre os quais as vaidades institucionais. Órgãos responsáveis por zelar pelas crianças não recebem a devida atenção. A tal absoluta prioridade tem sido relativizada.

Para dono de sorveteria, trabalho é educativo

Ele sabe que está contra a lei e, por isso, não quer se identificar. Dono de uma pequena fábrica de sorvetes, há 20 anos emprega crianças na venda de picolés em Balneário Camboriú. Para ele, a atividade é uma forma de dar às crianças noções do valor do trabalho e do dinheiro.

– Tenho meninos que trabalharam comigo e hoje são policiais, empresários, pais de família. A lei fala em exploração, mas eu não exploro o trabalho infantil. O que eles fazem, vendendo picolés, é educativo.

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O empresário conta que também começou a trabalhar ainda na infância, e não acredita que isso seja prejudicial. Para trabalhar com ele é preciso autorização dos pais. O sorveteiro também faz questão de conhecer as famílias dos pequenos empregados – para evitar que filhos trabalhem para sustentar pais viciados.

Não há exigência em relação à frequência no trabalho ou ao número de picolés vendidos. Em dias de prova, as crianças têm permissão para ficar em casa. Em compensação, precisam prestar contas do sorvete que levam no carrinho.

As crianças têm direito a 40% das vendas do dia. Os picolés custam de R$ 1 a R$ 2,75, e o ganho é pequeno. Mesmo assim, a maioria usa o que ganha para ajudar no orçamento de casa.

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Ciclo da pobreza

As dificuldades de punir quem se aproveita do trabalho infantil é um dos empecilhos para combater este tipo de violência contra a criança. Coordenadora do Centro de Apoio à Infância e Juventude do Ministério Público Estadual, a promotora de Justiça Helen Sanches explica que, dependendo do caso, é possível enquadrar o explorador em submissão à escravidão. Eventualmente, também pode-se apurar se há violação de direitos, exploração da mendicância, exposição a riscos.

– É uma contravenção, está prevista na lei. Mas se a criança já tem 10 anos, adianta destituir da família, se ela não vai ser adotada? Tem que se dar a essa família condições para que possa manter a criança e garantir um um crescimento adequado.

O combate passa também pela conscientização.

– Quem dá trabalho a criança ou adolescente comete violência. Quem compra, é cúmplice dessa violência. Crianças que trabalham são pobres, filhos de pobres que começaram a trabalhar cedo. O trabalho infantil perpetua o ciclo da pobreza – argumenta a auditora-fiscal do Trabalho e coordenadora da Fiscalização de Combate ao Trabalho Infantil na Superintendência Regional do Trabalho em SC, Inge Ranck.

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