Aos 64, Ian McEwan parece ter encontrado uma fórmula de equilibrar a balança do tempo, elegendo uma jovem de 20 anos como protagonista de Serena, seu novo romance. Inexperiente, mas boa leitora, ela se torna amante de um escritor, Tom Healey, usado pelo MI5 (serviço de Inteligência britânico), para escrever, sem saber, um manifesto anticomunista usado como contrapropaganda durante a Guerra Fria. Serena, recrutada como agente pelo MI5, tem parte nisso e poderia ter desaparecido logo nos primeiros capítulos se McEwan não ambientasse a história nos anos 1970, anunciando o prelúdio da atual crise europeia, ameaçadora da relativa autonomia da Grã-Bretanha, que perdeu as colônias, mas não perde a pose.

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Não se trata apenas de suposição. Em entrevista, McEwan confirmou a suspeita de que não concebeu a personagem Serena apenas com uma traidora de romances de espionagem como os de Ian Fleming ou John Le Carré. Sua meta é mais ambiciosa: confundir o leitor sobre quem está no comando da história, se o escritor ou a voraz leitora Serena. O livro, afinal, pode ter sido escrito pelos dois, ela e o escritor traído, que eventualmente estão juntos e casados, 40 anos depois.

– Tudo começou com um lembrete que deixei para mim mesmo num caderno de notas: escrever um romance no qual um homem tenta se livrar de uma mulher – conta McEwan.

Ele passou cinco anos pensando nessa nota e refletindo sobre o papel do escritor como leitor de mentes alheias, um espião capaz de saber mais sobre o outro do que ele mesmo, embora perca essa habilidade quando se envolve com o outro. Uma relação amorosa, diz ele, é sempre um caso de espionagem. Nele, os parceiros, dominados pela desconfiança mútua, escondem algumas particularidades com medo de perder um ao outro. A vida real, portanto, não se diferencia muito da ficção. Em ambas, o poder de alguém que julga atos alheios e espiona para se colocar no comando da situação exige do candidato mais que uma mente brilhante. Requer um comandante (ou um narrador) cheio de truques, capaz de seduzir.

McEwan confirma não ter o menor pudor em usar esse talento para manipular o leitor. Gosta imensamente disso, confirmando a estratégia na mesa de debates com a escritora norte-americana Jennifer Egan, na tarde de ontem. Mais que espionar os outros, Serena parece ter o propósito de promover um exame retrospectivo da geração de McEwan, marcada pela paranoia da Guerra Fria e o fracasso de estilos de vida alternativos.

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– Nos anos 1970 morava num apartamento minúsculo, tinha dois pares de meia e só os livros que podia carregar – conta o escritor. Hoje tem uma bela casa de verão do século 17 em Buckinghamshire, com um jardim cuidado por um alemão.

O autor viaja constantemente com sua mulher Annalena McCaffee, ex-jornalista e também escritora, (ela é autora do romance Exclusiva) e diz que, de alguma maneira, o estilo de vida burguês mudou sua literatura, antes menos comportada. Vale lembrar que o escritor era conhecido como Ian Macabro nos anos 1970 por causa de seu estilo gótico e personagens bizarros. A exemplo dos personagens de Almodóvar, que foram se aburguesando à medida que o cineasta fazia sucesso, os de McEwan parecem menos deslocados do que eram no passado. Talvez isso justifique a filiação ideológica do escritor Tom Healey em Serena, um liberal que condena o totalitarismo.

McEwan admite ter muito em comum com ele, especialmente pelo fato de ser o seu escritor de ficção um criador de textos apocalípticos que poderiam facilmente ser assinados por Orwell. Ou por ele próprio, que abandonou um projeto de romance distópico retomado em Serena pelo fictício autor Tom Healey.

– No entanto, não adotei Orwell como modelo. Queria, antes, retratar um angry man típico dos anos 1970, rotulado de direita por não estar alinhado com a política de países do Leste europeu, como a Romênia.

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Conhecendo bem a história do Brasil e, portanto, a inclinação ideológica da maioria dos intelectuais durante a ditadura militar, McEwan retornaria ao tema no debate com Jennifer Egan, dizendo estar ansioso para ver como os ficcionistas brasileiros vão reagir diante do novo quadro mundial, em que o País, elevado à condição de potência mundial, deve ocupar o lugar de antigos impérios como a Inglaterra.

O truque que McEwan usa para se disfarçar aparece logo nas primeiras linhas de Serena, que parece narrado pela própria, até que, no epílogo, o leitor é surpreendido. Diante do público que lotou a Tenda dos Autores para acompanhar seu debate, ele acabou revelando o final do próprio livro, para ele um happy ending. Afinal, espiã e escritor acabam se casando e se fundindo numa única pessoa, a do narrador. Sorte deles. McEwan lembra que os personagens de seus livros anteriores não chegaram a esse ponto.

– Todos acabam morrendo.