Doutor em Direito Internacional e especialista em Oriente Médio, Salem Nasser pondera as dificuldades para a ascensão de fato da Irmandade Muçulmana ao poder. Confira trechos da entrevista concedida a ZH ontem:

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Zero Hora – O que significará para o Egito se, de fato, vencer a Irmandade Muçulmana?

Salem Nasser – A primeira coisa a ser observada é o resultado da eleição, e isso sob dois aspectos: o primeiro, logicamente, é o nome do vencedor; o segundo é uma apreciação sobre a lisura do processo. Se ficar a impressão de que as eleições foram limpas e se ganhar o candidato da Irmandade, passa-se à dúvida sobre a reação do Conselho Militar. Há duas possibilidades fortes: ou os militares evitarão que ele tome posse, talvez alegando algum impedimento de ordem legal; ou deixarão que tome posse, mas se assegurarão de que não governe de fato. As duas coisas tiveram um terreno propício preparado pelas medidas dos últimos dias. A Corte Constitucional deixou brecha que talvez permita o questionamento da candidatura de Mursi, e o Conselho Militar chamou para si, poderes exclusivos para legislar e para preparar uma nova constituição. Em qualquer dos casos, não haveria de fato uma ascensão da Irmandade ao poder.

ZH – Mesmo se vencer, a Irmandade não irá assumir?

Nasser – O conselho militar demonstra que não está disposto a deixar as coisas passarem assim. O que poderia forçar uma mudança de postura seria as pessoas voltarem em massa às ruas, mas os militares contam também com o cansaço da população para criar um fato novo. Acho que a Irmandade também faz sua aposta. Pela forte representação popular que tem, o poder vai cair no seu colo, mais cedo ou mais tarde.

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ZH – O que é a Irmandade hoje no Egito e na região?

Nasser – É o mais antigo e o mais representativo dos movimentos do chamado Islã político. Ao longo do tempo, foi adequando suas estratégias. Como era podada e perseguida pelos regimes árabes, concentrou-se em proceder a uma islamização do tecido social, substituindo muitas vezes o Estado lá onde este se ausentava. Assim, conquistou uma larga medida de apoio popular.

ZH – Há espaço para a imposição de um estado islâmico?

Nasser – Não penso que esse seja um item prioritário na agenda. A Irmandade tem dado claros sinais da relação que quer ver constituída entre o Estado e o Islã. Eles enxergam essa relação de modo similar ao que já existe hoje, ou seja, uma fidelidade, ao menos declarada, ao espírito da religião, mais do que a suas regras mais particulares. Mas, diante do braço de ferro a que estamos assistindo, não me parece que seria fácil “impor” um Estado islâmico do tipo que deste lado do mundo se costuma imaginar e temer.

ZH – Houve um golpe?

Nasser – Tecnicamente, talvez se pudesse discutir se cabe a expressão golpe de Estado quando o que se tinha era ainda uma fase de transição. Certamente, o que houve foi um retrocesso forte no processo de passagem para um sistema mais aberto e democrático. Evidentemente, foi uma tentativa do antigo regime de, aproveitando-se de uma percebida fadiga popular, retornar ao estado de coisas anterior e retomar um poder inconteste sobre a sociedade egípcia. Quanto à promessa de entregar o poder a um civil eleito, a relevância disso depende das incógnitas que mencionei.