Este 22 de novembro marca os dez anos da maior tragédia natural da história de Santa Catarina. Foi neste dia que, em 2008, eram confirmadas em Jaraguá do Sul as três primeiras mortes em decorrência das chuvas que atingiram o Estado ao longo de dois meses – número que só cessou após a 135ª morte ser anunciada. Lembranças que até hoje entristecem os catarinenses, mas que trouxeram aprendizados, mudanças e estratégias pensadas para que catástrofes como esta não tornem a custar tantas vidas.

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Somente em Jaraguá do Sul, cidade do Norte Catarinense mais atingida pelas enchentes, foram 13 mortes por soterramento e uma por afogamento naquele ano, além de 7,3 mil casas atingidas e 1,8 mil desalojados e 95 desabrigados na região. Nos dois casos mais emblemáticos da cidade, um deles vitimou mãe e duas filhas e, no outro, nove pessoas de uma mesma família.

Passada uma década, a reportagem voltou a esses locais e em um deles, no alto da Rua Sibipirunas, no bairro Tifa Martins, conversou com o aposentado Germano Martins, que jamais vai esquecer da data e que detalha cada momento do final de semana de 22 de novembro de 2008. O jaraguense perdeu na tragédia a filha, Silvana Martins Manske, então com 30 anos, e as netas, Bruna e Maria Eduarda, ainda crianças, com oito e três anos. São elas as primeiras vítimas fatais contabilizadas pela Defesa Civil de Santa Catarina naquele ano.

Saudade é para toda a vida.

— Ás vezes venho para cá e vem a tristeza, vem lembranças que nunca param. A saudade é para toda a vida.

O desabafo de Martins é descrito ao pisar no terreno em que a filha e as netas moravam, no Loteamento Pakucheski. Segundo ele, as três estavam dentro de casa por volta das 22h30min da noite de sábado, 22, quando estalos foram ouvidos na residência. O pai das meninas e marido de Silvana, Carlos Manske, foi o único a se salvar. Pulou a janela e tentou retirar a família depois que a porta travou, mas não teve tempo para o resgate.

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CASA ENGOLIDA EM POUCOS SEGUNDOS

Conforme vizinhos que presenciaram o deslizamento de terra, a residência foi engolida em poucos segundos.

— Estávamos sem energia e eu e meu marido deitamos cedo. De repente ouvimos um estalo e os gritos de socorro. Levantamos correndo e tentamos ajudar, mas quando chegamos (do outro lado da rua) a casa já estava afundando morro abaixo. Não deu tempo para mais nada —recorda Valéria Leandra de Lima David, de 39 anos.

Segundo Valéria, que mora há 16 anos em frente ao local da tragédia, no mesmo ano outra casa vizinha já havia cedido por conta de um deslizamento. Depois das mortes, os receios por conta da localização das casas na encosta do morro aumentaram.

— Ainda hoje quando chove temos receio porque foi muito marcante o que aconteceu. Depois de um ano e meio da tragédia a prefeitura fez um muro de contenção, mas ainda vaza água ali e é um local úmido. Então a gente tem aquele medo de chover bastante e desmoronar tudo de novo — completa ela.

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Já Martins mora a poucos quilômetros dali, mas conta que por vezes já voltou no terreno para relembrar de como era conviver com a filha e as netas.

_ Lembro das festas, da união, do álbum de fotos que foi recuperado em meio à lama. Também guardo recordações dos trabalhos de escola da neta mais velha. São coisas que nunca se apagam da mente.

Ministro de igreja e dono de centenas de amigos feitos ao longo de mais de 30 anos morando na localidade, ele conta que conseguiu superar a dor da perda com a ajuda dos amigos e o apego à religião. Hoje lamenta que as ações de contenção feitas depois da tragédia poderiam ter sido feitas antes, mas não guarda rancor. Ao contrário, agradece o fato de que o ex-genro conseguiu reconstruir a vida após ter um terreno cedido pela prefeitura em um lugar seguro para morar.

— Graças a Deus, ele conseguiu seguir com a vida, casou de novo e teve uma menina, a Eduarda. A família dele mora na minha rua, então as vezes eles passam e a menina dele me chama de avô e dá um abraço na frente do portão.

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TRAGÉDIA MARCOU SOCORRISTAS

Poucas horas depois do desabamento que vitimou a mãe e as duas filhas, Jaraguá do Sul presenciou uma nova ocorrência com vítimas fatais já na madrugada de domingo, 23 de novembro de 2008. Era por volta das duas e meia quando nove pessoas morreram soterradas. Elas estavam em um imóvel de dois pavimentos engolido por cerca de 60 mil toneladas de terra que desprendeu do morro existente atrás da casa. Dos dez ocupantes do imóvel, apenas um morador sobreviveu. Nos terrenos ao lado também foram consumidos pela lama duas revendedoras de carros, que tiveram mais de 30 veículos destruídos entre carros e motos, e uma empresa de melado.

Atualmente, o terreno localizado na Rua Walter Marquardt, na Barra do Rio Molha, está para alugar e guarda apenas ruínas do muro que margeava a casa. No lado esquerdo da propriedade, no lugar da revenda funciona uma pista de autoescola e do outro lado permanece intacta uma das casas que não foi atingida pelo deslizamento. Um prédio também foi erguido na encosta da vegetação, que segundo a Defesa Civil, é considerada uma área segura conforme apontam laudos feitos por especialistas. Restaram apenas memórias.

Tanto o sobrevivente da tragédia quanto os moradores da casa preferiram não relembrar o caso, mas para quem ajudou no resgate, vivenciar o que aconteceu em 2008 no Estado e atuar em resgates como este quase no "quintal de casa", em Jaraguá do Sul, foi um choque de realidade. Foi o que ocorreu com Osvaldo Gonçalves, coordenador regional da Defesa Civil do Estado em Jaraguá do Sul. Ele participou de uma força tarefa que contou com voluntários, polícia, bombeiros, agentes da prefeitura e da Defesa Civil, e recorda o caso com um dos mais marcantes da carreira.

— Você é designado para uma ocorrência e tem que fazer o reconhecimento da cena e o que nós encontramos no local dessa tragédia foi um amontoado de terra, em que não se visualizava nada e que a gente começou a trabalhar e conseguiu encontrar a residência e os corpos. Quem trabalha com resgate, vou dizer que nós não temos coração de ferro, somos seres humanos e sentimos, ainda mais quando envolve pessoas e crianças, como ocorreu. Então você sente, mas o treinamento aflora e entendemos que temos que procurar incansavelmente por essas vítimas — revela.

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No mesmo dia, enquanto procuravam por corpos ou possíveis sobreviventes, a Defesa Civil contatou dezenas de famílias que moravam nas imediações e fizeram o pedido para que elas deixassem suas casas. Uma delas, Leonora Krueger, de 56 anos, recorda que ela e outros quatro familiares tiveram que se abrigar na casa de parentes.

— Fica marcado o susto e as perdas. Éramos conhecidos e amigos e assim como foi com eles poderia ter sido com a gente. Fomos alertados pela Defesa Civil que era um risco ficar dentro de casa e lembro que só deu tempo de pegarmos os documentos e sairmos rápido. Fomos liberados para voltar somente cinco dias depois, quando não havia mais risco — afirma ela.

MUDANÇAS PREVENTIVAS

De lá para cá houve evolução nesse sentido. De acordo com Osvaldo Gonçalves, Santa Catarina possui três radares que monitoram o quantitativo de volume de água, chuva de granizo e até vendavais. Com isso é possível emitir alertas com antecedência via SMS por celular. Ou seja, o aviso está mais acessível para as pessoas que vivem em áreas de risco. Uma mudança preventiva capaz de salvar vidas.

A redução dos impactos de eventos naturais dessa magnitude, tanto patrimoniais quanto da preservação de vidas, parte do princípio do sistema de alerta, além do trabalho mais ativo de prevenção com cursos e capacitação em conjunto também com a comunidade no intuito de fazer a evacuação de área com maior tempo e assertividade.

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— A Defesa Civil do Estado está trabalhando na questão de mapeamento de áreas de risco, sistema de alerta, monitoramento, toda uma questão que na época não existia. Fizemos também um simulado na mesma situação de 2008 de como seria o atendimento agora, com as evoluções propostas. Evoluímos muito culturalmente também, porque a gente tinha muita dificuldade em chegar para a pessoa e dizer 'olha, esse local não é seguro', então hoje já se criou uma cultura também a partir das escolas e a Defesa já é aceita nesses locais para levar as questões e treinamento para as pessoas — destaca Gonçalves.

Na avaliação do Corpo de Bombeiros Voluntários de Jaraguá do Sul, as tecnologias existentes e a busca constante de conhecimento são primordiais para garantir uma melhor organização durante os resgates, algo que era pouco desenvolvido na época.

— com todo o conhecimento que a gente buscou nos últimos anos, com certeza a organização, a logística e a atuação seriam diferentes. Com as técnicas que se tem hoje não digo que pudesse salvar mais pessoas naquela situação, mas com certeza o atendimento seria diferente e feito com muito mais organização. Aquilo que a gente busca diariamente com os treinamentos é essa organização, conseguir fazer a diferença na organização para otimizar os recursos e conseguir dar uma melhor resposta para a comunidade — avalia Neilor Vincenzi, comandante dos Bombeiros Voluntários de Jaraguá do Sul.

'Jaraguá do Sul está melhor preparada para enfrentar as adversidades climáticas', considera Prefeitura

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Em evento realizado em Guaramirim, no Norte Catarinense, que relembrou os dez anos da tragédia que acometeu Santa Catarina, o prefeito de Jaraguá do Sul, Antídio Lunelli, afirmou que considera que Jaraguá do Sul está melhor preparada para enfrentar as adversidades climáticas. A fala foi feita durante o Seminário da Defesa Civil, considera tanto as questões de estrutura da Diretoria de Proteção e Defesa Civil, quanto de organização do Município.

"Temos um Plano de Contingência, que foi atualizado neste ano, para garantir que todos os atendimentos, em caso de necessidade, sejam feitos da melhor maneira possível. Distribuímos este Plano de Contingência para todas as entidades que são parceiras da Defesa Civil, que são fundamentais para o êxito das operações. Jaraguá do Sul tem uma estrutura muito boa nas corporações de bombeiros voluntários, polícia militar, jeep clube, clube de canoagem, do Grupo Gerar, entre outros, além de pessoas ligadas às associações de moradores capacitadas para auxiliar neste trabalho. Enquanto Administração Municipal, tomamos várias medidas de prevenção, nestes quase dois anos de gestão", relatou.

Conforme o prefeito, o Executivo está trabalhando no desassoreamento de alguns trechos dos principais rios que cortam o município, como o Rio Jaraguá, na região central, onde afirma ter ocorrido a retirada de material num trecho de 250 metros do rio. "Neste mesmo trecho, construímos uma tubulação de 30 metros na margem esquerda do rio, para minimizar a ocorrência de alagamentos no Centro, que foi muito atingido nas últimas cheias", continuou.

O prefeito citou ainda o feitou de obras no Ribeirão Grande do Norte, onde houve a troca de uma travessia com tubos por galerias. Nos fundos do Parque Malwee, também houve trabalho ao longo de quase 200 metros na margem esquerda do Rio Jaraguá, para evitar a erosão, que estava se aproximando da rua. O mesmo foi feito na região central.

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Lunelli lembrou ainda da limpeza permanente realizada em parceria com a defesa civil, tanto das pontes, quanto dos rios, e o trabalho de conscientização junto à comunidade e de fiscalização em torno de construções irregulares nas encostas.

— Por meio da Fundação Jaraguaense de Meio Ambiente e do Samae, estamos fazendo a recuperação de algumas áreas degradas com o plantio de mudas nativas. Outra iniciativa que vale destacar como medida de prevenção e proteção dos rios, lançamos, recentemente, um programa para recuperar as matas ciliares dos principais rios, começando pelo Rio Itapocu na região acima da captação de água do Samae. O que aconteceu há dez anos aqui em Jaraguá do Sul serviu de alerta e temos a certeza que precisamos estar preparados — concluiu.