Entre as pedras, paredes e casarões que cercam São Francisco do Sul, a cidade também é costurada pelos mitos e crenças que se confundem com as memórias e vivências de seus moradores. Em seus 175 anos de emancipação, a reportagem do AN reuniu curiosidades do município, que começou a tecer a história mesmo antes de 15 de abril de 1847.

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Já nos anos 1500, no período pré-colonial, o território francisquense já era ocupado por povos de tradição umbu, sambaquianos e indígenas, conforme explica a historiadora e mestre em patrimônio cultural Andréa de Oliveira. A passagem dos primeiros navegadores europeus só se deu no século 16, com a formação do primeiro povoado que ocorreu pelas mãos dos portugueses vindos de São Vicente, no litoral de São Paulo, em 1658.

Historiadora Andréa contou a história da cidade
Historiadora Andréa contou a história da cidade (Foto: Patrick Rodrigues/NSC)

— Temos que pensar que já existia um povo aqui muito antes, que era caçador, pescador, que aqui viviam, faziam seus rituais, e enterravam seus mortos. Estamos num espaço que já foi habitado por outra cultura, com uma lógica de vida diferente — vislumbra a historiadora.

A região só atingiu a categoria de vila dois anos depois, tornando-se Paróquia Nossa Senhora da Graça do Rio São Francisco, em 1665. Depois, foi reconhecida como cidade por um decreto provincial sancionado pelo então presidente Antero José Ferreira de Brito, em abril de 1847. A denominação São Francisco do Sul, no entanto, foi oficializada somente em 1938.

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Porta de entrada do Estado, nos séculos seguintes, a baía da Babitonga até presenciou a passagem de piratas holandeses, franceses e ingleses, segundo Andréa, Thomas Frins. Esses piratas abrigavam-se em ilhas, seja para refúgio ou demonstrar domínio de território. As águas que banham a cidade também presenciaram a chegada de viajantes e imigrantes que vieram compor a colônia Dona Francisca a partir de 1851, além de viajantes como o naturalista francês August de Saint Hilaire, que passou pela cidade em 1820.

Apesar dos relatos de antigos historiadores, essas constatações são baseadas na oralidade.

— Há poucas coisas documentadas sobre a cidade, não temos um acervo histórico, por exemplo. É uma relação mais moral mesmo, de história oral — explica.

As assombrações do leprosário

Um dos locais mais emblemáticos da cidade são as ruínas do Leprosário ou Lazareto da Ponta da Costa, que fica no balneário de Capri, a 15 quilômetros do Centro Histórico. Segundo Andréa Oliveira, o espaço foi construído por ordem do imperador Dom Pedro II e serviu para abrigar doentes com moléstias contagiosas no final do século 19 – um tempo distante em que doenças como varíola, febre amarela, tuberculose e lepra assolavam o país.

— O maior surto de febre amarela que temos notícia foi em 1878, cuja mortalidade alarmou o governo da Província. Devido ao grande movimento portuário, quando chegava aqui alguma embarcação com bandeira amarela, era sinal de doença a bordo, e a população se alvoroçava e a embarcação era imediatamente mandada para a Ponta da Costa e lá fundeada, onde cumpria a quarentena imposta — destaca.

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Ruínas do leprosário de São Francisco do Sul
Ruínas do leprosário de São Francisco do Sul – (Foto: Patrick Rodrigues/NSC)
Local ficava isolado e era utilizado para internar doentes
Local ficava isolado e era utilizado para internar doentes – (Foto: Patrick Rodrigues/NSC)
Há relatos de que lazareto funcionou até os anos de 1900
Há relatos de que lazareto funcionou até os anos de 1900 – (Foto: Patrick Rodrigues/NSC)
Doentes que morriam no local eram enterrados em uma ilha próxima
Doentes que morriam no local eram enterrados em uma ilha próxima – (Foto: Patrick Rodrigues/NSC)
Local ficava afastado da população
Local ficava afastado da população – (Foto: Patrick Rodrigues/NSC)

Os que eram levados ao leprosário e lá morriam foram enterrados na ilha de Iriri, região do Saco do Iperoba, justamente para ficarem isolados da população. O que se tem notícia é de que o local funcionou até cerca de 1900. Anos depois, quando fechado, a área passou a ser utilizada por pescadores da redondeza que, desde então, faziam menções a aparições de visagens e assombrações que seriam os espíritos dos sepultados que vagavam pela ilha.

Atualmente, além das lendas, restam apenas os vestígios do espaço, que é cercado por árvores aroeiras, típicas de beira de praia, que vergam, mas não quebram. Nos pilares ainda de pé, é possível observar a tipologia construtiva baseada em pedras que acredita-se que eram coladas com óleo de baleia.

Com olhar atento e brilhante a cada detalhe das ruínas, a historiadora lamenta que o local não tenha sido tombado e que casas tenham sido construídas tão próximas do lazareto.

— Essas ruínas, essas árvores e essa estética mostram uma São Chico de um tempo anterior ao nosso. É uma cidade-documento — diz Oliveira.

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Outros mitos e crenças

Antônio Valdemiro Reis, de 49 anos, criou-se na pescaria e, apesar de um tanto descrente, as histórias que rondam as ilhas de São Francisco do Sul não passaram despercebidas à sua atenção. Ele garante que nunca viu nada, mas sabe de um homem todo vestido de preto que cerca as embarcações dos pescadores.

Antônio Valdemiro Reis, 49 anos
Antônio Valdemiro Reis é pescador desde sempre (Foto: Patrick Rodrigues/NSC)

Já seu Joaquim Airton da Silva, 70, é um legítimo contador de histórias e jura de pé junto que já vivenciou experiências sobrenaturais, como encontrar o remo de seu barco no mesmo local em que perdeu, mesmo após procurar por horas e retornar no dia seguinte.

—  Meu avô contava que vinha da roça quando viu uma coisa de outro mundo, como se fosse um pavão que, quando ele encostou, ficou endiabrado. Ele saiu dali e foi para a igreja — conta, aos risos.

Seu Joaquim é um legítimo contador de histórias
Seu Joaquim é um legítimo contador de histórias (Foto: Patrick Rodrigues/NSC)

A historiadora Andréa ainda relata que conhece histórias sobre bruxas e lobisomens que teriam assombrado a cidade. Em décadas passadas, era muito comum, segundo ela, que os moradores frequentassem benzedeiras para acalmar os sustos e tratar as “mínguas” das crianças.

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— Isso faz parte do imaginário, daquilo que não tem explicação. Era um tempo que não existia energia elétrica, algo no vulto da noite, que não era identificável, poderia se transformar num espírito — relata.

Estilos arquitetônicos e modernização da cidade

O Centro Histórico da cidade tem um conjunto arquitetônico com mais 140 imóveis tombados e reserva diferentes tipologias construtivas, desde as coloniais, no estilo mais português, até uma arquitetura eclética, com prédios mais modernos.

Ao caminhar pelas estreitas ruas da região central, as construções de largas paredes quadradas e grandes janelas se destacam, mas se engana quem pense se essas representam o estilo colonial. A Paróquia Nossa Senhora da Graça, a padroeira da cidade, é um exemplo deste modelo arquitetônico, que foi reformada nos anos seguintes.

— A igreja virou paróquia em 1665. Mas antes já existia a igreja, que passou por uma grande reforma em meados de 1700, e ela foi se descaracterizando. Antes era um estilo veneziano, mas mudou a fachada. Na época também só tinha uma torre, depois foi construída a outra — destaca Andrea de Oliveira.

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Igreja centenária passou por reforma com o passar dos anos
Igreja centenária passou por reforma com o passar dos anos – (Foto: Patrick Rodrigues/NSC)
Quando construída, igreja tinha apenas uma torre
Quando construída, igreja tinha apenas uma torre – (Foto: Arquivo pessoal)
Prédios no centro ainda preservam características coloniais
Prédios no centro ainda preservam características coloniais – (Foto: Patrick Rodrigues/NSC)
Prédio da esquerda traz um estilo mais contemporâneo, já os da direita são coloniais
Prédio da esquerda traz um estilo mais contemporâneo, já os da direita são coloniais – (Foto: Patrick Rodrigues/NSC)

Outro elemento que influencia no modelo arquitetônico da cidade, que deixa de ter casas de duas águas e passa a ter construções mais altas, é a campanha de higienização urbanística no final de 1800, conforme explica a historiadora.

A mudança se deu em várias cidades do país e trouxe outra lógica de construções, como casas com recuos e mais ventiladas, como forma de evitar doenças. Alguns prédios foram inspirados na Belle Époque, de Paris, e ainda resguardam pinturas nas paredes.

Datada de 1889 e construída em pedras, a Carioca, no entanto, é uma construção que preserva antigas referências.  A fonte de água era muito utilizada por cargueiros que pegavam água em latas e carregavam na cabeça ou atravessavam uma vara nas costas para levar dois baldes e vender aos moradores dos arredores.

Fonte Carioca utilizada por cargueiros para pegar água e vender
Fonte Carioca utilizada por cargueiros para pegar água e vender – (Foto: Patrick Rodrigues/NSC)
Fonte Carioca fica no Centro Histórico
Fonte Carioca fica no Centro Histórico – (Foto: Patrick Rodrigues/NSC)

— A Carioca tem dois azulejos que são imitações dos originais, que representa possivelmente uma escrava, que carregava a água, e seu fidalgo, com aspecto de bandeirante, de 1600. As próprias paredes, com pedras de cantaria, trazem a lógica de colonização — diz Andréa.

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A pequena cidade, que vivia da pesca, atividades extrativistas e agrícolas, entrou em colapso econômico após o fim da escravidão, se reergueu e mudou o modelo financeiro com o aumento das atividades marítimas e comerciais. Anos mais tarde, na metade do século 20, se expandiu ainda mais com a chegada do porto.

Para Andréa, que respira a cidade, não há falta de provas documentais que possa desacreditar a história de São Francisco do Sul:

— Uma terra antiga que se reinventa, que mantém hábitos plasmados no contexto geográfico. A cidade reverbera em cada um de nós. Nela, conjugamos nossos sentimentos, anseios, desejos e esperanças.